TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
369 acórdão n.º 346/15 Argumenta o recorrente que deve ser assegurado ao pai biológico o direito a rejeitar a paternidade como decorrência do livre desenvolvimento da sua personalidade e da reserva da sua vida privada e familiar, tal como se permitiu que a mulher pudesse proceder à interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, em nome do seu direito à autodeterminação, sob pena de se verificar uma desigualdade de tratamento, baseada no género. Esta posição segue a tese defendida por Jorge Martins Ribeiro, em O direito do homem a rejeitar a paternidade de filho nascido contra a sua vontade. A igualdade na decisão de procriar (edição de 2013 da Coimbra Editora). A preocupação com o direito da autodeterminação parental do homem não é nova na longa e atribu- lada história do estabelecimento jurídico da paternidade (cfr. Guilherme de Oliveira, em Critério jurídico da paternidade , pp. 97 e segs., edição de 1998, da Almedina). Na verdade, se com a Revolução Francesa, por um lado, em nome da igualdade, se atribuiu aos filhos naturais reconhecidos alguns dos direitos que cabiam aos filhos legítimos, por outro, a Lei do 12 do Brumá- rio do ano 11 (2 de novembro de 1793) passou a limitar a possibilidade de investigação da paternidade às situações em que se verificasse uma situação de posse de estado, tendo o Código Civil de Napoleão substi- tuído esta exceção pelos casos de rapto (artigo 340). Encoberta pelos argumentos mais imediatos dos receios da falibilidade da prova da paternidade e da caça às fortunas, a fundamentação desta solução não deixava de ter a sua sede no respeito pela autonomia da vontade do progenitor. Se a bandeira da igualdade tinha promovido uma mitigada equiparação dos filhos naturais aos legítimos, a defesa da liberdade exigia o respeito pela vontade individual. Como explica Guilherme de Oliveira a proibição do reconhecimento forçado da paternidade residia “no entendimento que se tinha, na época, do princípio fundamental da liberdade, e, no individualismo crescente. O século XVIII favoreceu empenhadamente, o culto da pessoa que o renascimento propusera ao mundo civilizado, e essa confiança na autonomia individual, na ausência de todo o constrangimento pro- duziu, na matéria que nos interessa, a predileção pelo reconhecimento voluntário; um homem não devia ser obrigado a reconhecer um filho quando não se dispusera a perfilhá-lo. A perfilhação significava uma admis- são livre do estatuto jurídico de pai; só a vontade soberana do progenitor podia atribuir ao filho natural – cujo nascimento irregular lhe dava uma baixa condição – um estatuto social semelhante aos bem-nascidos” (Em Curso de direito da família , vol. II, Tomo I, p. 205-206, edição 2006, Coimbra Editora). Este sistema viria a ser “exportado” sucessivamente para outros países latinos como Portugal, onde o Código Civil de 1867 (artigo 130.º) decretou como regra a proibição das ações de investigação da paterni- dade ilegítima, apenas a permitindo, a título excecional, nos casos em que houvesse um sinal da vontade de assumir a paternidade, o que sucedia quando existisse um escrito do pai em que este expressamente decla- rasse a sua paternidade ou quando o filho se encontrasse em situação de posse de estado, e ainda nos casos de estupro violento ou rapto à época da conceção, hipóteses em que, devido à censurabilidade das condutas adotadas, não se justificava a manutenção do direito à autodeterminação. O Decreto n.º 2, de 25 de dezembro de 1910 (artigo 34.º), seguindo mais uma vez o modelo francês do projeto Rivet-Béranger, mais tarde convertido na Lei de 16 de novembro de 1912, veio acrescentar a estas exceções as hipóteses de sedução com abuso de autoridade, abuso de confiança ou promessas de casamento e de convivência notória com a mãe no período da conceção, abrindo, assim, timidamente, o leque de pos- sibilidades de determinação da paternidade sem o assentimento do pai. O Código Civil de 1966, sem alteração do paradigma proibitivo, veio, contudo, alargar o campo prático das causas excecionais de admissibilidade da ação de investigação da paternidade, nelas incluindo o concu- binato e a sedução simples. A livre investigação da paternidade só regressaria com a Revolução de 1974, a aprovação da Constitui- ção de 1976 e a reforma do Código Civil operada pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro, reco- lhendo consenso a opinião que o direito ao conhecimento da paternidade biológica, assim como o direito ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, cabem no âmbito de proteção quer do direito fundamental
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