TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
34 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Os exemplos mostram que à heterogeneidade das situações de vida que poderão vir a ser incluídas na previsão lata do n.º 1 do artigo 335.º-A corresponderão distintos juízos de desvalor jurídico. A ilegitimidade da associação de todas estas situações a uma única e indiferenciada reação do direito – dotada da intensidade que é própria da intervenção penal – torna, também ela, incompreensível o sentido da incriminação. Assim, ainda por este motivo a norma incriminadora não logra definir, com a clareza que o n.º 1 do artigo 29.º da CRP exige, em que é que consiste o objeto da punição. 15. A conclusão, que só por si será suficiente para demonstrar que o novo tipo incriminador se não conforma com as exigências constitucionais que o legitimariam, tem no entanto consequências que se reper- cutem no incumprimento dos demais princípios que ao caso são aplicáveis. Assim, e subsidiariamente, pode dizer-se que, sendo deste modo construído o tipo, tudo indica que se considerará consumado o crime pela reunião destes dois elementos: património detido, possuído ou adquirido por um lado; incompatibilidade entre este e o sujeito a declaração, por outro. Pelo menos, é o que decorre de uma formulação literal que associa a censura penal à simples verificação de uma certa situação ou de um certo estado de coisas, resultante exclusivamente de uma incongruência, ou de uma «incompatibili- dade», entre duas grandezas. A ser assim presumido o cometimento do crime, sobre o agente recairá o ónus de, já no âmbito de um processo contra si instaurado, vir a oferecer justificação para a verificada variação patrimonial. E tal significará que, logo na formulação do tipo criminal e pelo modo como ele foi construído, se contrariou o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), entendido, na sua dimen- são substantiva, enquanto vínculo do próprio legislador penal. Por outro lado, perante esta formulação do tipo incriminador torna-se igualmente impossível divisar qual seja o bem jurídico digno de tutela penal que justifica a incriminação. Particularmente, torna-se mani- festamente impossível nele (no tipo) divisar a prossecução daquele bem, dotado da mais intensa dignidade porque da mais intensa refração na ordem axiológica da Constituição, que o próprio legislador, no caso, diz ter prosseguido. Criminalizar uma mera variação patrimonial entre duas grandezas, o património detido e aquele outro sujeito a declaração, significa optar por uma medida de política criminal de tal modo imperfeitamente dese- nhada que a partir dela se não consegue vislumbrar qual seja verdadeiramente a «conduta» humana objeto da censura jurídico-penal. Em tais circunstâncias, nas quais se encontra comprometida a própria possibilidade de a formulação da incriminação dar a conhecer o que é ou não proibido pelo direito, comprometida estará também a possibilidade de se anteverem os bens que justificariam a incriminação. Tanto bastará para que se considere que no caso se não cumpriu a exigência que decorre do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, segundo a qual só será constitucionalmente legítima a medida de política criminal que, traduzindo-se na instituição de uma nova incriminação, vise a preservação de um «valor social» cuja tutela se mostre dotada – nos termos atrás expostos (cfr., supra, ponto 10.1.) – de dignidade jurídico-penal. Numa incriminação de tal modo lata que pode englobar situações de vida heterogéneas, às quais não é legítimo associar uma única e indiferenciada reação por parte do direito, é logicamente impossível que se divise por que motivo resolveu o legislador unir a heterogeneidade, desencadeando para ela a intervenção penal que, em Estado de direito, deve constituir sempre um recurso de última instância. A estas considerações não obstam as indicações que o próprio Parlamento forneceu, no n.º 2 do artigo 335.º-A, relativamente às razões pelas quais assim decidia instituir o crime de enriquecimento injustificado. Como já se viu, tais indicações, que não têm eficácia prescritiva, intendiam conferir ao «bem jurídico» protegido pela nova incriminação uma particular intensidade axiológica, e assim, à necessidade da sua tutela, uma particular dignidade. A especial refração que esse bem teria no sistema de valores da Constituição – por se concretizar em exigências de preservação do Estado de direito democrático – assim o demonstraria. Contudo, não se vê que articulação possa existir entre o tipo criminal, tal como ele foi desenhado no n.º 1 do artigo 335.º-A, e a preservação deste valor constitucional de primeira grandeza. O tipo, já o sabemos, preenche-se com a verificação da «incompatibilidade» entre o património tido e o sujeito a declaração. Ora,
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=