TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
33 acórdão n.º 377/15 Pode com efeito entender-se que a variação patrimonial censurada é, apenas, de ordem numérica ou quantitativa: se assim for, o tipo criminal preencher-se-á – considerando-se portanto perfeitas as condições para que, relativamente a ele, se deduza acusação – com a mera verificação de uma não coincidência entre os montantes a que ascendem as duas grandezas em confronto, e isto qualquer que seja a respetiva origem ou proveniência (lícita ou ilícita). Para corroborar que foi este o sentido que o legislador quis conferir ao termo [incompatibilidade] invocar-se-ão, porventura, dois argumentos. Por um lado, um argumento de ordem literal, decorrente do que vem disposto nos n. os 5 e 6 do artigo 335.º-A. Como no n.º 5 do preceito se faz depender a punibilidade da «ação» do montante a que ascenda a discrepância entre o que é «tido» e o que é «declarado» (se a discrepância for inferior a 350 salários mínimos mensais a «conduta» não será punível) e no n.º 6 se agrava a pena (até 5 anos de prisão) caso tal montante ultrapasse os 500 salários mínimos mensais, dir-se-á que o sentido a atribuir ao conceito, nuclear, de variação patrimonial será de ordem estritamente quantitativa. Para confirmar a conclusão invocar-se-á porventura ainda um outro argumento, desta vez de ordem histórica. Uma vez que os trabalhos preparatórios (cfr., supra, ponto 6) revelam que o legislador, ao pretender construir o tipo criminal do enriquecimento injustificado por contraposição ou diferença em relação ao anterior tipo de crime de enriquecimento ilícito, propositadamente eliminou, dos termos em que descreve a nova infração, as referências antes existentes à ausência de origem lícita determinada dos bens e rendimentos ou aos bens legítimos, dir-se-á então que o novo tipo de crime, desenhado portanto com maior amplitude, se perfaz com a mera verificação de uma incompatibilidade quantitativa entre o património «tido» e os bens «declarados» ou que devam sê-lo. E isto independentemente dos motivos, lícitos ou ilícitos, que possam justificar a referida variação patrimonial, uma vez que a inclusão destes elementos valorativos na descrição típica do que é agora incriminado veio a ser, propositadamente, evitada. «Incompatibilidade», nesta aceção, seria, assim, um elemento típico estritamente descritivo. Contudo, se assim é, fica por esclarecer a razão de ser do próprio nome que foi conferido ao crime, e que consta da epígrafe do artigo 335.º-A. O qualificativo injustificado, que se acrescenta ao substantivo enriquecimento, parece pressupor algo mais do que uma simples verificação de montantes patrimoniais não coincidentes; parece pressupor que à não coincidência se associa logo um juízo de desvalor. A ser assim, «incompatibilidade», seria já, nesta aceção, não um elemento típico descritivo, mas um elemento típico nor- mativo. Mas não se vê como possa compreender-se um tal juízo de desvalor, se a «incompatibilidade» entre as duas grandezas [património tido, património sujeito a declaração] puder ser verificada pela existência de uma simples discrepância quantitativa – independentemente de qualquer averiguação quanto às suas causas, e à valoração que elas mereçam ao direito. Seja como for, a incerteza mantém-se, contribuindo ela própria para que a redação do preceito nada ou pouco informe sobre o facto voluntário que se erige em objeto da censura penal. A este ponto acresce um outro, que surge como consequência direta de tudo quanto acaba de dizer-se. O âmbito da incriminação, assim tão incertamente definido, é de tal modo amplo que poderá abranger situações de vida muito heterogéneas, e às quais não será legítimo associar um único e indiferenciado juízo de desvalor jurídico. Dada a latitude da previsão, pode suceder que a variação patrimonial verificada seja reveladora de uma prática ilícita, traduzida na prestação de declarações não fidedignas, ou não correspondentes com a realidade. Nessa situação, porém, uma será a censura que o «comportamento» típico merecerá ao direito, e que se concretizará na previsão do crime de fraude fiscal (artigos 103.º e 104.º do Regime Geral das Infrações Tri- butárias). Poderá também acontecer que, subsumidas ao tipo do enriquecimento injustificado, deste modo tão latamente descrito, se encontrem variações patrimoniais reveladoras de acréscimos de riqueza obtidos por práticas que, por envolverem corrupção, enquanto fenómeno lato de captura privada de bens que pela comu- nidade deveriam ser fruídos, lesem o «valor» da confiança, tal como o legislador o prefigurou ao identificar as razões que, a seu ver, justificariam a incriminação. Mas o intenso juízo de desvalor que nesse caso a «ação» merecerá do direito poderá já decorrer, por exemplo, da previsão do crime de branqueamento de capitais (artigo 368.º-A do Código Penal).
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