TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
327 acórdão n.º 329/15 DECLARAÇÃO DE VOTO 1. No presente caso, decidiu o Tribunal inverter jurisprudência sua consolidada que sempre subscrevi (ver, por exemplo, Acórdãos n. os 534/04, 24/06, 286/08, 331/08, 377/11, 117/12, 426/13, 185/14, 355/14, 620/14, 732/14, 735/14 e 814/14). De acordo com esta jurisprudência, o momento relevante para a aferição dos pressupostos de admissibilidade dos recursos de constitucionalidade é o correspondente à data da sua interposição. Sendo esta a doutrina que agora se inverte, discordo da inversão por três razões fundamentais. Primeira, porque ela me parece contrária às exigências decorrentes da natureza objetiva do recurso de constitucionalidade; segunda, porque ela me parece igualmente contrária às exigências decorrentes da sua natureza subjetiva; terceira, porque ela me parece contrária ao princípio da subsidiariedade que norteia o âmbito da intervenção do Tribunal Constitucional, sempre que estejam em causa recursos interpostos de decisões dos restantes tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade tenha sido arguida durante o processo [artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional]. 2. Em primeiro lugar, a inversão de jurisprudência que no caso se dá é, a meu ver, contrária às exigências decorrentes da natureza objetiva do recurso de constitucionalidade. Num sistema de controlo concreto de constitucionalidade de normas como o nosso, que tem, objetiva- mente, uma natureza mista, o recurso para o Tribunal Constitucional configura-se como um meio processual que, pela sua própria estrutura, é também ele “misturado” ou “híbrido”. A natureza mista do nosso sistema de controlo concreto de normas decorre, como bem se sabe, do facto de nele coexistirem dois modelos de jus- tiça constitucional que, histórica e conceptualmente, são entre si diversos, senão mesmo opostos: o modelo de controlo difuso, que se dá na «base» (artigo 204.º da Constituição) e o modelo de controlo concentrado ou de jurisdição autónoma, que se dá no «topo» (artigo 221.º da Constituição). O compromisso que esta «mistura» implica comunica-se inevitavelmente ao recurso de constitucionalidade. Por um lado, trata-se de um recurso verdadeiro e próprio, na exata medida em que pressupõe o reexame, por parte de tribunal superior, de questão já decidida por tribunal inferior – a questão relativa à constitucionalidade da norma. Mas, por outro lado, trata-se de recurso de natureza singularíssima, uma vez que é interposto, não para um tribunal pertencente à mesma ordem a que pertence o tribunal a quo, mas para uma jurisdição autónoma, que existe para além das categorias dos demais tribunais (artigo 209.º da Constituição). Esta natureza singularíssima do recurso de constitucionalidade, que decorre do nosso modelo de con- trolo concreto de normas, exige a consecução de um equilíbrio que, em última análise, só a prática jurispru- dencial do próprio Tribunal Constitucional pode garantir que se realize. Ao Tribunal pede-se (ou exige-se) uma prática que torne inequívoca, não apenas a sua não configuração como quarta instância de recurso na ordem dos tribunais comuns (que em caso algum é), como a sua condição de jurisdição autónoma, destinada precipuamente a assegurar uma uniforme hermenêutica constitucional. No plano do direito substantivo, práticas argumentativas que incluam como ponto primacial a interpretação do direito ordinário – remetendo para linhas finais a tarefa de interpretação da Constituição – não cumprem, a meu ver, estas exigências. Como as não cumprem, também a meu ver, aquelas práticas que, no domínio do direito adjetivo, potenciem a visão de uma «dinâmica comum» do processo, tendente a unir – como se de um continuum se tratasse – o processo já desencadeado no Tribunal Constitucional, com a interposição do recurso de constitucionalidade, e o seu seguimento, depois disso, no tribunal a quo. Admitir que o obstáculo ao conhecimento do recurso de constitucionalidade, visível no momento da sua interposição, pode vir a ser «sanado» por factos supervenientes, decorrentes exclusivamente da prossecu- ção do processo junto do tribunal comum, pressupõe justamente esta valoração de uma «dinâmica comum do processo», que só contribui para obscurecer a condição própria da jurisdição constitucional.
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=