TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
32 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 14. Entendeu o legislador dever prosseguir este bem jurídico, por ele próprio caracterizado como sendo um bem de primeira grandeza, através da previsão típica de uma infração que decorre, objetivamente, da reunião de dois elementos: (i) a aquisição, posse ou detenção de património, por um lado; (ii) a incompati- bilidade entre este último e os rendimentos e bens declarados ou que devam sê-lo, por outro. O agente típico da infração confundir-se-á com o cidadão comum, uma vez que a incompatibilidade entre o património adquirido, detido ou possuído e aquele outro a declarar será criminalmente relevante sempre que ocorrer na esfera de qualquer pessoa. É o que se depreende da frase com que se inicia o «desenho» do tipo [«quem, por si ou por interposta pessoa(…)»], e que abre o n.º 1 do artigo 335.º-A. Assim sendo, o alvo da censura jurídico-penal, ou, dizendo por outras palavras, o «comportamento» típico que é punível, e que se considera apto para lesar atual ou potencialmente o bem jurídico valioso que se quis proteger, confunde-se com a existência de uma incompatibilidade ou incongruência entre duas grande- zas – o património «tido» e o «sujeito a declaração». E residindo aí, nessa incompatibilidade, o cerne da cen- sura do legislador, o «comportamento» criminalizado traduzir-se-á – se a estes dados juntarmos a qualidade do agente típico da infração, o cidadão comum – na verificação de qualquer variação patrimonial, ocorrida a qualquer altura na esfera de qualquer pessoa, entre o «tido» e o sujeito a declaração. Perante esta incriminação «típica», porém, torna-se desde logo manifesto que, com o seu desenho, o legislador não cumpriu o dever que sobre ele impende de identificar com a máxima precisão que a natureza da linguagem consentir o facto voluntário que considera punível. A descrição da infração criminal, deste modo feita pelo Decreto da Assembleia, não cumpre na verdade as exigências decorrentes do princípio cons- titucional de lex certa , textualmente sediado no n.º 1 do artigo 29.º da CRP. É que, desde logo, não cumpre a função precípua de garantia que o princípio da legalidade penal, nas vestes de tipicidade, prossegue – a de tornar cognoscível o sentido da proibição penal, de modo a que os cidadãos com ela se possam conformar ou por ela se possam orientar. Como se disse no Acórdão n.º 168/99 (cfr., supra, ponto 10.2.): «[a]veriguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal [aplicável] com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente cla- reza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima». Ora é precisamente nestas circunstâncias que se encontra a norma incriminadora constante do n.º 1 do artigo 335.º-A, que o Decreto da Assembleia pretende aditar ao Código Penal. Com efeito, e em primeiro lugar, ao considerar-se punível a verificação de uma mera variação patrimo- nial, ou uma incongruência entre duas grandezas – o património «tido» e o sujeito a declaração – deixa-se por identificar o concreto «comportamento», comissivo ou omissivo, ao qual se associa o juízo de desvalor penal. A exigência que decorre do n.º 1 do artigo 29.º da CRP, segundo o qual «[n]inguém deve ser sentenciado senão em virtude de lei (…) que declare punível a ação ou omissão (…)» fica assim por cumprir. O que o artigo 335.º-A do Decreto da Assembleia pretende criminalizar confunde-se com um estado de coisas repor- tado a uma situação objetiva de incompatibilidade. Perante uma tal deficiência na construção legislativa do tipo, fica-se logo por esse motivo sem saber em que é que consiste, com o mínimo de determinação exigível, o facto voluntário punível, de modo a que com a previsão penal se possam harmonizar os comportamentos dos cidadãos. Depois, e em segundo lugar, permanecem incertezas e dúvidas quanto ao sentido que deva ser atribuído aos requisitos dos quais depende o preenchimento do tipo criminal, ou, o que é dizer o mesmo, relativa- mente às condições que devem estar reunidas para que, considerando-se perfeito o crime, quanto a ele se possa deduzir acusação. Sendo dois os elementos da infração – (i) património adquirido, possuído ou detido; (ii) incompatibi- lidade entre este e o sujeito a declaração – parece certo que o cerne da censura penal estará na verificação da «incompatibilidade» entre as duas grandezas. Já se tinha salientado este ponto. Porém, o que importa agora notar é que não há certezas quanto ao que se deva entender por tal «incompatibilidade».
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