TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015

316 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Por outro lado, esta vertente conformadora, ou mesmo restritiva, do direito de propriedade privada pode surgir em resultado de normas reguladoras do processo ou da alocação do ónus da prova, as quais somente serão inconstitucionais se forem insuscetíveis de credenciar-se racionalmente, afetando excessiva- mente a posição patrimonial protegida pelo artigo 62.º da Constituição. Neste juízo, há que ter na devida conta que um sistema institucional de instrumentos e mecanismos jurídicos e de normas organizatórias e procedimentais é um elemento essencial para garantir a tutela de outros interesses constitucionalmente pro- tegidos, mormente a segurança no domínio e na exploração dos bens. 12.1. A apreciação da presente questão de constitucionalidade reclama que se deem como assentes dois pontos prévios. O primeiro é o de que não é transponível para o caso a jurisprudência lavrada no Acórdão n.º 353/04 (já referido). É incontestável que um normativo que previsse que a classificação de certos bens como dominiais implicaria, ipso facto, a sua automática transferência para tal domínio, sem previsão de indemnização ou compensação, seria inconstitucional, por violar o preceituado no n.º 2 do artigo 62.º da Constituição. Con- tudo, não é este o segmento normativo que integra o objeto do presente recurso, o qual não trata, portanto, de questão análoga nem sequer semelhante. O segundo é o de que a apreciação crítica que o legislador fez do regime probatório por ele mesmo criado, sendo um elemento relevante, não é um fator determinante na apreciação da questão de constitu- cionalidade sob escrutínio, já que o juízo legislativo da conveniência e adequação de um dado complexo normativo não se sobrepõe, como é bom de ver, à apreciação pelo Tribunal Constitucional, enquanto órgão a quem compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional (artigo 221.º, n.º 1, da CRP). 12.2. Como vimos, as margens de águas públicas, pelo relevo público que lhes é conatural, ingressam, na ausência de direitos de propriedade privada, no domínio público de entes públicos. Contudo, as normas em crise não se limitam a instituir uma particular alocação do ónus da prova. Estatuem, ainda, um prazo para a propositura da ação de reconhecimento do direito de propriedade privada – prazo esse que, ao tempo dos autos, terminaria em 1 de julho de 2014, por aplicação da Lei n.º 78/2013 – a que acresce a necessidade de oferecer prova documental de tal direito, ou prova da posse privada dos bens em causa, em momento anterior a 31 de dezembro de 1864 [cfr. o artigo 15.º, n. os 1 e 2, alínea a) , da Lei n.º 54/2005, na redação conferida pela Lei n.º 78/2013]. O regime jurídico assim delineado justifica-se em razão da necessidade de dar estabilidade à base domi- nial, visto estarem em causa coisas que o legislador, em cumprimento do mandato constitucional inscrito no artigo 84.º, n.º 1, alínea f ) , considera proporcionarem utilidade pública merecedora de um estatuto e de uma proteção especiais. Vale isto por dizer que as exigências vertidas nas normas em crise – que só valem, recorde- -se, para as margens de águas navegáveis ou flutuáveis – encontram o seu fundamento último na proteção de interesses constitucionais a que esse tipo de águas se acha indissociavelmente ligado. Resta apurar se estas exigências apresentam creditação racional, equilibrando os interesses cuja consecu- ção se visa alcançar, ou se, ao contrário, instituem, como entendeu a decisão recorrida, uma probatio verda- deiramente diabolica, suscetível de brigar com a garantia de acesso ao direito e com o direito de propriedade privada. 12.3. No entender deste Tribunal, a fixação de um prazo máximo para a propositura da ação de reconhe- cimento – afinal, o único aspeto verdadeiramente inovador relativamente ao regime jurídico anteriormente vigente (cfr. o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 468/71) – é um elemento indispensável à estabilização da base

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