TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015

311 acórdão n.º 326/15 Por isso, mesmo quando o particular logre comprovar o seu direito de propriedade sobre margens de águas públicas, o legislador dispõe de diversos mecanismos para instituir a eventual afetação pública desses terrenos, tais como o direito de preferência em caso de alienação forçada ou voluntária, a expropriação e a constituição de servidões administrativas (cfr. os artigos 16.º e 21.º da Lei n.º 54/2005). Entretanto, com a alteração promovida pela Lei n.º 34/2014, de 19 de junho, o reconhecimento da propriedade privadas sobre margens de águas públicas deixou de estar sujeito a qualquer prazo, infirmando a teleologia ínsita à Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que foi a de evitar a “instabilidade permanente da base dominial”. C. Apreciação da questão de constitucionalidade 8. O teor da decisão recorrida e os fundamentos nela usados para rejeitar a aplicação da norma contida no artigo 15.º, n. os  1 e 2, alínea a) , da Lei n.º 54/2005 exigem um cotejo deste normativo com o conteúdo do direito de propriedade privada, consagrado no artigo 62.º da CRP, e do direito de acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva, vertido no artigo 20.º da Lei Fundamental. Aquele preceito que integra o título III, o chamado “catálogo dos direitos económicos, sociais e cul- turais”. No entanto, constituindo a propriedade um pressuposto da autonomia das pessoas, é abundante a jurisprudência constitucional que reconhece natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias de algumas dimensões deste direito (cfr., entre outros, os Acórdãos n. os 329/99, 517/99, 134/04, 159/07, e 421/09, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt ) . Como se explica no Acórdão n.º 421/09: «(…) Que assim é demonstra-o, afinal, a própria história do constitucionalismo, em que a defesa da propriedade ocupou sempre um lugar central: no plano individual, contra as investidas arbitrárias dos poderes públicos no património de cada um; no plano coletivo, quanto à própria possibilidade da existência de uma sociedade civil diferenciada do Estado, e assente autonomamente na apropriação privada de uma ampla gama de bens que permita o estabelecimento de relações económicas à margem do poder político. (…)» Sendo certo que nem todas as dimensões do direito de propriedade devem beneficiar do regime especí- fico dos direitos, liberdades e garantias, é indiscutível que isso deve suceder pelo menos quanto a uma dessas dimensões – precisamente, o direito de não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública e tão-só com base em lei e mediante o pagamento de uma justa indemnização (cfr. o artigo 62.º, n.º 2, da CRP). Eis, de acordo com a jurisprudência, o “eixo central” do radical subjetivo presente no direito de propriedade (cfr. os Acórdãos n. os 329/99 e 421/09). A ratio do n.º 2 do artigo 62.º da CRP é, pois, o princípio da igualdade perante os encargos públicos, de acordo com o qual o sacrifício grave e especial imposto a um particular – seja por via de requisição, expropriação ou de outro ato ablativo – deve ser com- pensado pela comunidade (cfr. o Acórdão n.º 491/02, disponível em www.tribunalconstitucional.pt ) . Contudo, o apuramento do que seja um sacrifício grave e especial do direito de propriedade de um particular está longe de ser tarefa fácil, porquanto, a par da dimensão subjetiva já densificada, o artigo 62.º da CRP consagra igualmente uma importante dimensão institucional e objetiva, que tem por destinatário o legislador ordinário. Esta outra dimensão assaca ao legislador a tarefa de compaginar a regulação do direito de propriedade com todos os imperativos constitucionais que nele se projetam ( v. g. , o direito à habitação, o ordenamento do território, a proteção da saúde pública), isto é, no contexto global da lei fundamental. Mesmo na ausência de uma referência expressa a essa tarefa, a jurisprudência constitucional vem repetida- mente confirmando que o n.º 1 do artigo 62.º traz implícita uma cláusula legal de conformação social da propriedade (cfr., entre outros, os Acórdãos n. os 617/07 e 421/09).

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