TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
31 acórdão n.º 377/15 13. Decretou a Assembleia que o enriquecimento injustificado viesse a acrescer, enquanto novo tipo crimi- nal, ao conjunto dos «crimes contra o Estado», e, mais especificamente, no quadro desta categoria, aos «crimes contra a realização do Estado de direito», os quais incluem já a «alteração violenta do Estado de direito» (artigo 325.º do Código Penal), o «incitamento à guerra civil ou à alteração violenta do Estado de direito» (artigo 326.º), o «atentado contra o Presidente da República» (artigo 327.º), a «ofensa à honra do Presidente da Repú- blica» (artigo 328.º), a «sabotagem» (artigo 329.º), o «incitamento à desobediência coletiva» (artigo 330.º), as «ligações com o estrangeiro» (artigo 331.º), a «coação contra órgãos constitucionais» (artigo 333.º), a «pertur- bação do funcionamento de órgão constitucional» (artigo 334.º) e o «tráfico de influências» (artigo 335.º). Para justificar o aditamento a este elenco resultante do artigo 335.º-A, revelou o Parlamento, no n.º 2 desse mesmo artigo, que entendia serem os factos descritos no n.º 1 lesivos do Estado de direito democrá- tico, na medida em que por seu intermédio se agrediriam desde logo «interesses fundamentais do Estado» e a «confiança nas instituições e no mercado». Acrescentou-se ainda a lesão da «transparência», da «probidade», da «idoneidade sobre a proveniência das fontes de rendimento e património», a «equidade», a «livre concor- rência», e a «igualdade de oportunidades». Destes dois elementos, conjugados – quer da inserção do enriquecimento injustificado no quadro siste- mático dos «crimes contra a realização do Estado de direito», quer dos motivos apresentados pelo legislador para o prefigurar como um novo tipo de crime, aí enquadrado –, resulta logo, à evidência, que o poder legis- lativo conferiu a maior «dignidade», ou o mais intenso peso axiológico, ao bem jurídico que, no seu entender, será protegido pela nova incriminação. Além disso, dos mesmos elementos resulta igualmente que uma tal intensidade axiológica, trazida agora, pelo Decreto parlamentar, para o universo da incriminação penal, apre- senta uma clara homologia com o sistema de valores constitucionalmente reconhecido. De facto, o legislador não convocou aqui um interesse coletivo na preservação de valores sociais que só à luz de outros ordenamen- tos – morais, religiosos ou ideológicos – que não o ordenamento constitucional merecessem ser preservados. Pelo contrário: os valores que, de acordo com o Decreto, se pretendem preservar, e para cuja preservação se recorre à instância penal, são os da própria subsistência da arquitetura essencial da ordem constitucional. Ter-se-á na verdade entendido que, numa ordem como esta – que tem como princípios essenciais, entre outros, a limitação dos poderes públicos e a proteção da liberdade individual – cada membro da coletivi- dade política deve poder confiar na possibilidade da máxima efetividade dos princípios constitucionais, ou na possibilidade da máxima correspondência entre a sua enunciação jurídica e a sua realização na vida. Em Estado de direito democrático nenhuma autoridade que seja superior ou exterior à Constituição dispõe de meios que permitam impor coativamente o cumprimento da ordem que ela própria institui. Confiar em que tal cumprimento se verificará, não obstante a ausência deste «elemento coativo externo», consubstancia assim um pressuposto de realização do Estado de direito e da democracia. Ora – ter-se-á também entendido – a disseminação de práticas ilícitas que envolvam corrupção (literalmente: ato ou processo de corromper, de perverter, de usar ou obter em benefício próprio ou de outrem vantagens ou bens que à comunidade perten- ceria usar ou fruir) constitui um fenómeno que lesa, ou pode vir a lesar gravemente, a confiança de que se nutre a ordem que a Constituição estabelece; e por isso se incluiu como crime contra a «realização do Estado de direito» aquele que decorrerá da incompatibilidade existente entre património adquirido, possuído ou detido e bens e rendimentos declarados ou que devam sê-lo. A ser, como parece, este o sentido a conferir tanto ao lugar sistemático que o crime de enriquecimento injustificado ocupa quanto à proclamação de motivos que acompanha o «desenho» do seu tipo, é claro que o legislador, ao proceder a esse «desenho», entendeu estar em causa uma medida de política criminal que visaria realizar um bem jurídico dotado de particular dignidade, porque com intensa refração no sistema de valores constitucionais. Será pois à luz desta consideração – que não pode deixar de ser tida em conta num contexto em que a margem de decisão legislativa determina o âmbito do controlo que dela faz o Tribunal – que se resolverá a questão de saber se o tipo criminal que por estes motivos foi «desenhado» cumpre ou não os princípios que, sob a perspetiva da Constituição, o legitimam.
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