TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
304 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL uma “prova diabólica”, traduzida numa exigência de difícil ou mesmo impossível cumprimento por parte dos proprietários, que assim correm sérios riscos de perderem as suas propriedades a favor do Estado. Ou seja, o artigo 15.º, n. os 1 e 2, alínea a) , consagra, no entender do tribunal recorrido, uma presunção de domi- nialidade relativamente a certos terrenos, impondo aos interessados o ónus da prova de que os mesmos lhe pertencem ou de que se encontram na sua posse desde 1864. B. Enquadramento da questão de constitucionalidade 5.1. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 84.º da CRP, pertencem ao domínio público, entre outros bens, «as águas territoriais com os seus leitos e fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos». Trata-se de uma disposição que assenta na convicção de que as águas, pela sua importância e afetação públicas, devem estar fora do comércio jurídico privado e de que são, portanto, inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis. Na verdade, o domínio público hídrico, na medida em que se ache funcionalmente ligado à “circulação” de bens, pessoas e ideias, diz respeito a coisas tidas por vitais para a comunidade, ou seja, dotadas de um «grau de utilidade pública primordial», circunstância que explica a integração dominial de que são objeto na generalidade dos ordenamentos jurídicos (cfr., neste sentido, José Pedro Fernandes, “Domínio Público”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública , Volume IV, pp. 166 e segs.). Nos termos da alínea f ) do mesmo dispositivo constitucional, o conjunto das coisas públicas integra ainda «outros bens como tal classificados por lei». De acordo com a doutrina nacional, isto significa que há bens que são declarados dominiais pela CRP, e cuja declaração de dominialidade não pode ser revogada por lei ordinária: são os bens dominiais por natureza, herdeiros das antigas res communes omnium; e há bens que são dominiais por serem assim declarados por lei, e cuja dominialidade está, portanto, na disponibilidade do legislador ordinário: são os bens dominiais por determinação legal [cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Volume II, 9.ª edição (reimpressão), 1980, p. 897; João Caupers, Introdução ao Direito Admi- nistrativo, Lisboa, Âncora, 2013, 11.ª edição, pp.184/185]. Contudo, a doutrina chama a atenção para que esta margem de manobra legislativa não é absoluta ou irrestrita, carecendo a “dominialização” de outros bens para além dos enunciados no artigo 84.º da CRP de uma justificação válida à luz dos interesses constitucionalmente protegidos e do princípio da proporcionali- dade. Com efeito, o domínio público está associado a um regime jurídico de direito público derrogatório da propriedade privada – o que, naturalmente, não é inócuo do ponto de vista jurídico-constitucional, sobre- tudo no quadro de uma economia de mercado. Assim se explica que, subjacente à sujeição legal de uma dada categoria de bens ao domínio público e à consequente afirmação da propriedade pública sobre a mesma, devam estar fundamentos que atestem a indispensabilidade ou, pelo menos, a elevada conveniência dessa subordinação à satisfação de certo interesse público, tendo em conta que o legislador dispõe de meios alter- nativos para a consecução desse escopo, tais como as servidões administrativas e outras restrições de utilidade pública (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista e atualizada, 2007, pp. 1004, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, 2006, pp. 81 e segs., e José Pedro Fernandes, ob. cit. , p. 179). 5.2. Ora, as margens de águas públicas não integram, à luz da CRP, o domínio público por natureza. A sua classificação legal como dominiais surgiu com o artigo 2.º do Decreto Régio de 31 de dezembro de 1864, que incluiu no domínio público imprescritível os portos de mar e praias e os rios navegáveis e flutuá- veis, com as suas margens, os canais de valas, os portos artificiais e as docas existentes ou que de futuro se construíssem (cfr. Diogo Freitas do Amaral/José Pedro Fernandes, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico, Coimbra Editora, 1978, p. 100). Segundo a doutrina, a atribuição de carácter dominial às praias – e, acrescentamos, às margens de cursos de água navegáveis e flutuáveis – implicou, tão-somente, a incorporação
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