TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
30 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL primeiro enunciam-se desde logo os dois elementos que, reunidos, perfarão o novo tipo criminal – (i) quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver património; (ii) que seja incompatível com os seus rendimentos e bens declarados ou devam ser declarados. De seguida, faz-se cor- responder a este crime, cuja descrição típica se encontra assim perfeita, a pena de prisão até 3 anos. Sendo decisiva para a construção do ilícito criminal a incompatibilidade entre património adquirido, possuído ou detido pelo agente (qualquer um, por si ou por interposta pessoa) e aquele outro sujeito a declaração, os n. os 5 e 6 do preceito dedicam-se a modular a punição, genericamente prevista no n.º 1 (prisão até 3 anos), em função do «valor» a que ascenda tal incompatibilidade. Assim, não só é excluída a punibilidade se tal «valor» for inferior a 350 salários mínimos mensais (n.º 5), como se alarga o limite máximo da pena de prisão – 5 anos – em caso de excesso para mais de 500 salários mínimos mensais. Por seu turno, os n. os 3 e 4 dedicam-se a determinar, não só o que se deva entender por «património», mas também o que se deva entender «por rendimentos e bens declarados ou que devam ser declarados». Finalmente, o n.º 2 esclarece que as «condutas previstas no número anterior atentam contra o Estado de direito democrático, agridem interesses fundamentais do Estado, a confiança nas instituições e no mercado, a transparência, a probidade, a idoneidade sobre a proveniência das fontes de rendimento e património, a equidade, a livre concorrência e a igualdade de oportunidades». 12. Deve começar por dizer-se que o facto de o legislador, neste n.º 2 do artigo 335.º-A, ter decidido identificar os valores que, em seu entender, justificam a incriminação – por serem aqueles que, ainda segundo o seu entendimento, as condutas agora puníveis lesam – não dispensa o Tribunal de averiguar se, no caso, se cumpriram ou não os padrões que legitimam a constitucionalidade das normas incriminadoras. Na verdade, não se vê que outro alcance possa ser conferido ao esclarecimento prestado pelo legislador senão esse mesmo – o da identificação dos objetivos que o motivaram, tarefa não raras vezes cumprida pelos preâmbulos ou «exposições de motivos» que antecedem os diplomas legais. Tal como aí sucede, as explicações dadas pelo legislador auxiliarão seguramente o intérprete na melhor compreensão do regime legal; mas, não fazendo parte integrante dele, não relevam elas próprias do domínio do direito instituído, carecendo por isso, em si mesmas, de eficácia prescritiva. Se assim é em geral, por maioria de razão o será quando a «matéria legis- lada» se traduzir na previsão de novas incriminações. Aí, a proclamação, por parte do legislador, das razões pelas quais entendeu dever criminalizar certa conduta será certamente reveladora da ponderação que ele próprio – enquanto primeiro mediador e concretizador da ordem constitucional – terá feito, quer quanto à necessidade do crime e da pena quer quanto ao modo pelo qual procedeu à sua previsão típica. Todavia, nem por isso a «proclamação» legislativa terá por si só qualquer virtualidade de transformar tal ponderação em coisa por si mesma justa ou constitucionalmente válida, a dispensar ulterior reexame por parte da jurisdição competente. Se tal ocorresse, não mais estariam as leis «nas mãos» das normas constitucionais vinculantes; seriam antes estas últimas, e particularmente aquelas que consagram liberdades fundamentais, a encontrar-se na inteira disponibilidade das decisões legislativas. Certo é, no entanto, que à «proclamação» de motivos deste modo feita pelo próprio legislador não poderá o Tribunal deixar de dedicar atenção especial. Cabendo ao poder legislativo, em primeira linha, o juízo sobre a necessidade do recurso à intervenção penal, e dispondo por isso o legislador nesta matéria – quer quanto à decisão de criminalizar, quer quanto ao modo por que o fez – da margem de liberdade conformadora que a Constituição lhe reconhece, a limitação, por decisão do Tribunal, dessa ampla discricionariedade legislativa só poderá ocorrer se puder demonstrar-se que foram in casu ultrapassados os limites impostos pelos padrões constitucionais que legitimam, em Estado de direito, quaisquer decisões legislativas destinadas a instituir novas incriminações. Sendo este o exato âmbito em que se desenvolve o juízo do Tribunal, para o proferir não pode deixar de conferir-se especial atenção às razões que foram invocadas pelo próprio legislador para justificar esta sua decisão de instituir o novo crime do enriquecimento injustificado.
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