TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
259 acórdão n.º 280/15 pela liquidação do património deste e repartição por aqueles do produto obtido com a liquidação (artigo 1.º do CIRE). Nele relevam, pois, em preponderância, senão mesmo em exclusividade, os interesses patrimo- niais dos credores e a defesa da massa insolvente. Os efeitos que diretamente decorrem para o insolvente da decisão que decreta a insolvência são, pois, de ordem essencialmente patrimonial, designadamente ao nível dos poderes de administração dos bens que integram a massa insolvente, os quais, por efeito da declaração de insolvência, se transferem imediatamente, em regra, para o administrador da insolvência (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE). Não é, contudo, nessa ordem de ponderações de valor que o incidente de qualificação da insolvência se estrutura, nem é a esse nível patrimonial que mais se fazem sentir os efeitos decorrentes da qualificação da insolvência como culposa (sublinhando a especial incidência da qualificação no plano dos direitos pessoais do insolvente, cfr. Jorge Duarte Pinheiro, «Os efeitos pessoais da declaração de insolvência», em Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, pp. 207 e segs.). O que está em causa neste incidente, como facilmente se constata dos aspetos mais significativos do seu enquadramento legal, é o apuramento de responsabilidades pela situação de insolvência, ou pelo seu agrava- mento, e a punição dos responsáveis. Por isso, verificados os respetivos pressupostos legais, pode e deve ser aberto o incidente de qualificação da insolvência ainda que o processo de insolvência não possa prosseguir para liquidação, por presumível insuficiência da massa insolvente, inexistindo, pois, qualquer relação de prejudicialidade entre o processo principal de insolvência e o respetivo incidente qualificativo (artigo 39.º, n.º 1, do CIRE). Do elenco legal das medidas a aplicar, por efeito da qualificação da insolvência como culposa, constam, por outro lado, medidas inibitórias cuja justificação nenhuma relação tem com os valores e interesses de natureza essencialmente patrimonial e privada que estruturam o processo de insolvência. Com efeito, a inibição das pessoas afetadas para a administração de patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio e ocupação dos cargos especificados na lei [artigo 189.º, n.º 2, alíneas b) e c) , do CIRE), medida de alcance simultaneamente repressivo e preventivo, só se compreende pela necessidade de proteger «o interesse público da segurança e confiança do tráfego económico e comercial» ou a «credibilidade da vida comercial» (o que vem sendo, aliás, consensualmente reconhecido na doutrina; cfr, entre outros, José de Oliveira Ascensão, «Efeitos da falência sobre a pessoa e negócios do falido», em Revista da Ordem dos Advogados, Ano 55, dezembro de 1995, pp. 642 e segs.), comungando, assim, da mesma teleologia norma- tiva que justifica a tipificação penal dos crimes de insolvência dolosa e negligente (salientando a identidade, neste particular, da norma mercantil e da norma penal, cfr. Rui Estrela de Oliveira, «Uma brevíssima incur- são pelos incidentes de qualificação da insolvência», em O Direito , Ano 142.º, 2010, V, pp. 944-945). Mas apesar da similitude valorativa com o direito criminal, não há dúvida que está em causa um «regime punitivo sancionatório civil», integrado por «medidas restritivas de direito privado» ou «sanções civis de natureza pessoal» (cfr. Manuel Carneiro da Frada, «A responsabilidade dos administradores na insolvência», em Revista da Ordem dos Advogados , Ano 66, setembro de 2006, p. 685, e Rui Estrela de Oliveira, ob. cit. , p. 944). Segundo o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 70/12, «a insolvência culposa é uma categoria normativa, a que corresponde um regime próprio, que genericamente se pode caracterizar como punitivo e dissuasor de práticas violadoras de deveres funcionais dos administradores», o que confere ao processo de insolvência, globalmente considerado, que é um processo de natureza civil, uma dimensão eclética onde se cruzam interesses de natureza privada, os interesses dos credores do insolvente, e valores de ordem pública que claramente os transcendem. O que é importante sublinhar, todavia, é que, independentemente da fundamentação material ou axio- lógica que possa estar na origem, e, mesmo, justificar, no plano constitucional, a adoção de medidas inibitó- rias dessa natureza – questão de inconstitucionalidade que, tendo já sido apreciada pelo Tribunal Constitu- cional no seu Acórdão n.º 530/12, não constitui objeto do presente recurso –, estão em causa medidas que se repercutem substantivamente na esfera jurídica pessoal dos afetados pela qualificação da insolvência em áreas que, do ponto de vista constitucional, manifestamente não são neutras (salientando este aspeto, cfr. Acórdão
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=