TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 92.º Volume \ 2015

19 acórdão n.º 96/15 O Código Penal de 1982 eliminou o Capítulo antes designado por “Das falsidades” e procedeu a uma rear- rumação sistemática dos crimes que nele se incluíam. Passou, então, a distinguir entre, por um lado, aqueles crimes que – tal como os de falsificação de documentos, moeda, pesos e medidas – são considerados crimes contra valores e interesses da vida em sociedade (Capítulo II do Título IV) e, por outro, aqueles que são con- siderados “crimes contra a realização da justiça” e como tal incluídos no Título dos “crimes contra o Estado” (Capítulo III do Título V). Entre estes últimos encontram-se, por exemplo, a falsidade de depoimento ou declarações, a que corresponde o atual artigo 359.º do Código Penal ou a falsidade de testemunho, prevista no artigo 360.º do mesmo Código, preceito para o qual a decisão recorrida, em juízo de interpretação de direito infraconstitucional que a este Tribunal não cabe sindicar, entendeu que o artigo 97.º do atual Código do Notariado remeteria. Ora, integrada neste contexto, como tem de sê-lo, facilmente se percebe que – como nota o Ministério Público na sua alegação – a diferença que, nesta parte, se constata entre a redação do artigo 107.º do Código do Notariado de 1967 e o artigo 97.º do atual Código do Notariado – recorde-se: a substituição da remissão para o crime de “falsidade” pela remissão para o crime de “falsas declarações perante oficial público” – é “meramente consequencial das modificações sistemáticas introduzidas no Código Penal”, visando simplesmente adequar aquele preceito do Código do Notariado à nova designação e arrumação sistemática do Código Penal de 1982». Falta saber, todavia, se esta presumida “simples adequação” foi ou não efetuada em termos de salvaguardar as exigências constitucionais decorrentes do princípio da legalidade e da reserva de competência legislativa da Assem- bleia da República. 8. A remissão, na formulação originária, para o crime de falsidade, dado o caráter genérico da designação, já suscitava dúvida quanto à norma para que o artigo 107.º do Código do Notariado reenviava, na determinação da pena aplicável. Fazia parte do Código Penal de 1886, como se viu, um capítulo intitulado “Das falsidades”. Desse capítulo constava uma secção (Secção II), prevendo (artigo 216.º) o crime de “falsificação de documentos autên- ticos ou que fazem prova plena”. O n.º 3 desta norma determinava a condenação de quem cometer falsificação «fazendo falsa declaração de qualquer facto, que os mesmos documentos têm por fim certificar e autenticar, ou que é essencial para a validade desses documentos». Integrada no mesmo capítulo, a secção VI dispunha sobre o “falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública”. Dela fazia parte o artigo 242.º, prevendo o crime de “falso testemunho em inquirição não contenciosa. Falsas declarações perante a autoridade”. Esta dualidade de previsões, a do n.º 3 do artigo 216.º e a do artigo 242.º, espelhava normativamente a distin- ção entre falsificação (intelectual) de documentos e falsas declarações. A distinção reveste-se de extrema dificuldade, sobretudo quando, como é o caso, as falsas declarações são incorporadas em documento autêntico – cfr. Helena Moniz, O crime de falsificação de documentos. Da falsificação intelectual e da falsidade em documento, Coimbra, 1993, p. 214. Para Maia Gonçalves ( Código Penal Português, 3.ª edição, Coimbra, 1977, p. 380), «há falsidade intelectual quando o documento é genuíno; não foi alterado, mas, contudo, não traduz a verdade. A desconformidade há de resultar, em princípio, de uma desconformidade entre o documento e a declaração. Se o documento está de harmonia com a declaração, mas no entanto esta não está de harmonia com a realidade, não pode haver falsidade intelectual (…)». Beleza dos Santos também admitia a distinção, mas acabava por remeter para a norma (artigo 38.º, § único) reguladora do concurso aparente de infrações (“Falsificação de documentos e falsas declarações à autoridade”, in Revista de Legislação e Jurisprudência , ano 70.º, p. 257). Em face da dificuldade da distinção, não pode dizer-se que a jurisprudência emitida na vigência do Código Penal de 1886 tenha seguido um critério uniforme de aplicação. Assim, enquanto que o Acórdão do STJ, de 8 de outubro de 1969 (Boletim do Ministério da Justiça, 190.º, 239) pareceu adotar um critério idêntico ao proposto por Maia Gonçalves, ao decidir que «se o documento está de harmonia com a declaração, não existe falsidade (…)», já o Acórdão de 24 de janeiro de 1968, do mesmo Supremo Tribunal (in Boletim do Ministério da Justiça , 173.º, p. 179) dele se afastou, ao deixar lavrado: «Verifica-se o crime de falsificação de documento, na forma de falsificação intelectual, previsto no artigo 216.º do Código Penal, quando, com intenção de prejudicar, se fazem

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