TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 92.º Volume \ 2015

183 acórdão n.º 94/15 Entendeu, por isso, a decisão recorrida que se colocava no caso concreto a questão de saber se o Estado, através de uma entidade administrativa (Autoridade para as Condições de Trabalho – ACT) e do Ministério Público, poderia intrometer-se numa relação jurídica de natureza privada estabelecida entre duas pessoas, em relação à qual as partes não haviam suscitado qualquer conflito de interesses, nem estavam em litígio. Seguidamente, depois de apontar diversas deficiências técnicas e “incoerências” ao referido regime legal, a decisão recorrida considerou que a «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» não corresponde à efetivação de qualquer concreto direito material/substantivo, designadamente, de um direito ou interesse de ordem pública, consubstanciando uma intervenção e intromissão do Estado numa relação jurídica de natureza absolutamente privada, estabelecida entre duas pessoas ao abrigo dos princípios da liber- dade contratual e da autonomia privada, não tendo em vista tal intervenção solucionar um qualquer litígio existente entre elas, mas sim sujeitá-las a uma declaração judicial da qualificação do contrato que tal relação jurídica consubstancia, obrigando-as a um litígio judicial que as mesmas não querem e que efetivamente não é por elas suscitado, podendo mesmo obrigá-las à modificação da relação jurídica que constituíram entre si. Feitas estas considerações, a decisão recorrida concluiu que o regime legal da «ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho» era desconforme com a Constituição, tendo recusado a aplicação das mencionadas normas dos artigos 26.º, n.º 1, alínea i), e n.º 6, e 186.º-K a 186.º-R, todos do Código de Pro- cesso do Trabalho, com fundamento na violação do “Princípio Fundamental do Estado de Direito Demo- crático consagrado no artigo 2.º da CRP, na sua vertente do princípio da segurança jurídica e do princípio da confiança”, do “Princípio Fundamental da Liberdade de Escolha do Género de Trabalho, consagrado no artigo 47.º/1 da CRP” e do “Princípio Fundamental da Igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP”. Antes de apreciar se o referido regime normativo viola os referidos parâmetros constitucionais, importa, para melhor análise das questões suscitadas, proceder a um enquadramento das alterações legislativas intro- duzidas pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto. Esta lei, conforme consta do seu artigo 1.º, teve como propósito instituir «mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado». Tendo em vista esse objetivo, criou um procedimento administrativo da competência da Autoridade para as Condições do Trabalho (previsto no 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, aditado pelo artigo 4.º da referida Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto), bem como uma nova ação judicial (a ação de reconhecimento da existên- cia de contrato de trabalho), que passou a integrar o conjunto das ações enumeradas no artigo 26.º, estando a sua tramitação prevista nos artigos 186.º-K a 186.º-R do Código de Processo do Trabalho, aditados pelo artigo 5.º da referida Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto. Este último diploma teve a sua origem no Projeto de Lei n.º 142/XII, resultante de iniciativa legislativa de cidadãos, em cuja exposição de motivos constava o seguinte: «A precariedade atinge hoje cerca de 2 milhões de trabalhadores em Portugal e o seu crescimento ameaça todos os outros. Com a situação atual, defrauda-se o presente, insulta-se o passado e hipoteca-se a futuro. Desperdiçam- -se as aspirações de toda uma geração de novos trabalhadores, que não pode prosperar. Desperdiçam-se décadas de esforço, investimento e dedicação das gerações anteriores, também elas cada vez mais afetadas pelo desemprego e pela precariedade. Desperdiçam-se os recursos e competências, retiram-se esperanças e direitos e, portanto, uma perspetiva de futuro. É necessário desencadear uma mudança qualitativa do país. É urgente terminar com a situação precária para a qual estão a ser arrastados os trabalhadores, que legitimamente aspiram a um futuro digno com direitos em todas as áreas da vida. Assim, a presente “Lei Contra a Precariedade” introduz mecanismos legais de modo a evitar a perpetuação das formas atípicas e injustas de trabalho, incidindo sobre três vetores fundamentais da degradação das relações laborais com prejuízo claro para o lado do trabalhador: os falsos recibos verdes, a contratação a prazo e a trabalho temporário.»

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=