TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 92.º Volume \ 2015

155 acórdão n.º 79/15 16 . O princípio da legalidade penal encontra a sua matriz na garantia do cidadão perante Estado, prote- gendo-o contra intervenções punitivas arbitrárias, ganhando progressivamente o reforço fundamentador dos princípios democrático e da separação de poderes, com atribuição ao parlamento da competência exclusiva para definir os crimes e estabelecer as penas, e também um fundamento interno, político-criminal, por cons- tituir exigência lógica da função de prevenção (geral e especial) e do princípio da culpa que a lei penal seja clara, precisa e anterior aos factos. Como se disse no Acórdão n.º 183/08, em reflexão centrada na dimensão que aqui releva – o princípio da proibição da aplicação analógica da lei penal: «O princípio aqui consignado é um “princípio-garantia”; visa, portanto, “instituir direta e imediatamente uma garantia dos cidadãos” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição , 7.ª edição, p. 1167). Não se trata, pois, apenas de um qualquer princípio constitucional mas de uma “garantia dos cidadãos”, uma garantia que a nossa Constituição – ao invés de outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional – explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias relevando, assim, toda a carga axiológico- -normativa que lhe está subjacente. Uma carga que se torna mais evidente quando se representa historicamente a experiência da inexistência do princípio da legalidade criminal na Europa do Antigo Regime e nos Estados totali- tários do século XX (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, p. 178). Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras “entorses” à eficácia do sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado. É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da presunção de inocência, com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da legalidade (nullum crimen sine lege certa) . Estes princí- pios e direitos parecem não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências comunitárias que justi- ficam o poder punitivo. Não se pense pois que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial. O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção “axiológica” de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevis- tas, colocar a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo. Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser corrigidos pelo intérprete contra o arguido. É o que bem explica Figueiredo Dias ( Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, p. 180): Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redação funcionam, por isso, sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também outros comportamentos. Neste sentido se tornou célebre a afirmação de v. Liszt segundo a qual a lei penal constitui a magna Charta do criminoso. No mesmo sentido, diz Taipa de Carvalho ( Direito Penal, I, Porto 2003, p. 210 s.): O texto legal constitui, porém, um limite às conclusões interpretativas teleológicas, no sentido de impedir a aplicação da norma a uma situação que não esteja abrangida pelo teor literal da norma, isto é, por um ou vários significados da(s) palavra(s) do texto legal. Poder-se-á dizer que, assim, ficarão, por vezes, fora do âmbito jurídico- -penal situações tão ou mais graves do que as expressamente abrangidas pela norma legal (…). Responde-se que assim é, e tem de ser quer em nome da tal garantia política do cidadão quer na linha do caráter fragmentário do direito penal. A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível − uma barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional

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