TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014

651 acórdão n.º 545/14 Enquanto direito individual – que interessa aqui especialmente considerar – a liberdade de religião con- tém uma vertente garantística ou de abstenção e defesa perante o Estado, consistindo na liberdade de ter ou não ter religião e de mudar de religião e que inclui, para quem professe uma religião, o direito de celebrar o respectivo culto e as respectivas festividades, o de cumprir os deveres dela decorrentes e o de a manifestar na sua vida pessoal, contraindo casamento ou educando os filhos de harmonia com essa religião. Para além dessa dimensão negativa, a liberdade religiosa comporta ainda uma dimensão positiva, de natureza prestacional ou regulatória, que pressupõe que o Estado assuma um conjunto de obrigações, que poderão variar de acordo com a representatividade das diversas religiões, destinadas a proporcionar aos crentes as condições para o cumprimento dos deveres religiosos, como por exemplo sucede com o reco- nhecimento dos casamentos religiosos, a abertura das escolas públicas ao ensino da religião e a atribuição de condições de assistência religiosa nas instituições públicas, como prisões ou hospitais. E, nesse sentido, o Estado não assegura a liberdade de religião se, apesar de reconhecer aos cidadãos o direito de terem uma religião, os puser em condições que os impeçam de a praticar (sobre todos estes aspetos, Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4.ª edição, Coimbra, pp. 609-611, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I Tomo, Coimbra, p. 447). 5. OTribunal Constitucional, ao pronunciar-se sobre a constitucionalidade do diploma que veio regula- mentar a lecionação da disciplina de Religião e Moral nas escolas públicas, teve já oportunidade de referir-se à liberdade de religião como forma positiva de exercício, ainda que ela se encontre intimamente conexionada com a liberdade religiosa negativa. De facto, como se afirma no Acórdão n.º 423/87, o princípio da separação entre o Estado e as igrejas e da não confessionalidade do Estado, a par do princípio da liberdade de organização e independência das igrejas e das confissões religiosas – a que o n.º 4 do artigo 41.º da Constituição dá expressão –, implica a neutralidade religiosa do Estado mas não já o seu desconhecimento do facto religioso enquanto facto social. A neutralidade estatal significa radical indiferença por toda a valoração religiosa do facto religioso (o Estado não valora ou desvalora, em atitude confessional, a consciência laica por oposição à consciência religiosa ou a consciência de certa religião relativamente a uma outra), mas não já enquanto facto constitutivo de uma certa procura social. O que permite considerar que a omissão do Estado possa redundar, em certas circunstâncias, em afron- tamento ao princípio da liberdade religiosa na sua componente positiva, que surge especialmente justificada na seguinte passagem desse aresto: «(…) a concepção da liberdade religiosa com um mero conteúdo formal, entendida como esfera de autonomia frente ao Estado e reduzida ao livre jogo da espontaneidade social, parece não satisfazer, por insuficiência, as cons- ciências dos nossos dias. Porque a dimensão real da liberdade, de todas as liberdades, e por isso também da liberdade religiosa, depende fundamentalmente das situações sociais que permitem ou impedem o seu desfrute existencial como opções reais, a questão deve centrar-se na transformação do conceito de liberdade autonomia em liberdade situação, isto é, no sig- nificado positivo de liberdade enquanto poder concreto de realizar determinados fins que constituem o seu objeto, não só pela remoção dos entraves que impedem o seu exercício como também pela prestação positiva das condições e meios indispensáveis à realização (cfr. A. Fernandez-Miranda Campoamor, «Estado laico y libertad religiosa» , in Revista de Estúdios Políticos, n.º 6, p. 68).» Daí que se tenha concluído, em relação ao caso em apreciação, que «a neutralidade do Estado não impede que este deixe de criar as condições adequadas à facilitação do exercício da liberdade religiosa à população estudantil, que, inscrevendo-se num contexto tradutor de uma certa realidade, não pode ser ignorada como fenómeno social. Não se trata de proteger ou privilegiar uma qualquer confissão religiosa, mas sim garantir o efectivo exercício da liberdade religiosa, como consequência de uma situação e de uma exigência social».

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