TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014

65 acórdão n.º 575/14 em relação aos atos da função legislativa do Estado é coisa incerta ou vaga, precisamente porque o que é conatural a essa função é a possibilidade, que detém o legislador, de rever ou alterar, de acordo com as dife- rentes exigências históricas, opções outrora tomadas. Contudo, a possibilidade de alteração dessas opções, se é irrestrita (uma vez cumpridas as demais normas constitucionais que sejam aplicáveis) quando as novas soluções legislativas são pensadas para valer apenas para o futuro, não pode deixar de ter limites sempre que o legislador decide que os efeitos das suas escolhas hão de ter, por alguma forma, certa repercussão sobre o passado. A Constituição não proíbe, em geral, que as novas escolhas legislativas – tomadas pelo legislador ordi- nário no quadro da sua estrutural habilitação para rever opções antes tomadas por outros legisladores histó- ricos – façam repercutir os seus efeitos sobre o passado. Mas, para além disso, não proíbe nem pode proibir genericamente que o legislador recorra a uma “técnica” de modelação da repercussão dos efeitos das suas escolhas em face da variabilidade dos graus de intensidade de que ela pode revestir. Na verdade, a repercussão sobre o passado [das novas escolhas legislativas] pode assumir uma intensidade forte ou máxima, sempre que a lei nova faça repercutir os seus efeitos sobre factos pretéritos, praticados ao abrigo de lei anterior, redefinindo assim a sua disciplina jurídica. Mas pode também assumir uma intensidade fraca, mínima ou de grau intermédio, sempre que a lei nova, pretendendo embora valer sobre o futuro, redefina a disciplina de relações jurídicas constituídas ao abrigo de um (diverso) Direito anterior. Neste último caso, designa-se este especial grau de repercussão dos efeitos das novas decisões legislativas como sendo de «retroatividade fraca, imprópria ou inautêntica», ou ainda, mais simplesmente, de «retrospetividade». Como quer que seja, e não sendo o recurso por parte do legislador a qualquer uma destas formas de retroação da eficácia dos seus atos genericamente proibida pela Constituição, a convocação legislativa de qualquer uma destas técnicas não deixa de colocar problemas constitucionais, face justamente ao imperativo de segurança jurídica que decorre do princípio do Estado de direito. É, com efeito, evidente que a repercussão sobre o passado das novas escolhas legislativas, qualquer que seja a forma ou o grau de que se revista, diminui ou fragiliza a faculdade, que os cidadãos de um Estado de direito devem ter, de poder saber com o que contam, nas relações que estabelecem com os órgãos de poder estadual. Precisamente por isso, a Constituição proibiu expressamente o recurso, por parte do legislador, à retroatividade forte, sempre que a medida legislativa que a ela recorre implicar intervenções gravosas na liber- dade e (ou) no património das pessoas, assim sucedendo quando estejam em causa restrições a direitos, liber- dades e garantias (artigo 18.º, n.º 3), a definição de comportamentos criminalmente puníveis (artigo 29.º, n.º 1), ou a criação de impostos ou definição dos seus elementos essenciais (artigo 103.º, n.º 3). A razão pela qual a Constituição exclui a possibilidade de existência de leis retroativas nesses casos reside precisamente na intensidade da condição de insegurança pessoal que do contrário resultaria no quadro de um Estado de direito democrático como é aquele que o artigo 2.º institui. Dito isto, resta concluir que o facto de não haver uma proibição constitucional explícita de, noutros casos, se recorrer às formas graduais e muito variáveis de «retroatividade própria» ou «imprópria» não sig- nifica que o recurso a qualquer uma destas formas esteja sempre e em qualquer circunstância à disposição do legislador ordinário. O princípio segundo o qual o poder legislativo está genericamente habilitado pela Constituição a atribuir às suas decisões, por diferentes formas e em diferentes graus, eficácia para o passado, conhece limites. E estes decorrem da necessária convivência entre este princípio e o princípio do Estado de direito, na sua dimensão de «segurança jurídica». 22. O método a adotar na resolução deste específico problema constitucional, decorrente da necessária conciliação entre o princípio democrático, que sustenta a autorrevisibilidade das leis, e o princípio do Estado de direito, que sustenta os limites impostos a esta autorrevisibilidade por exigências de segurança jurídica, foi explicitado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 287/90. Aí se disse que, especialmente nos casos em que o problema se apresenta com contornos mais delicados – e que são aqueles em que ocorre a chamada «retroatividade imprópria ou inautêntica», também designada como «retrospetividade», nos quais a norma

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