TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014

634 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL liberdade de religião (prevista e tutelada pelo artigo 41.º, n.º 1, da Constituição), em moldes não consentidos pelo princípio da proporcionalidade, também da Constituição. Nesta sequência, é de ponderar, no âmbito do programa constitucional amplo de proteção da liberdade religiosa, que não pode decorrer da interpretação da alínea a) do artigo 14.º da Lei da Liberdade Religiosa, ao referir-se a «flexibilidade de horário», a consideração tão só de uma modalidade de «horário flexível» (como previsto no Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto ou, muito limitadamente, no artigo 56.º do Código do Trabalho), que, ao permitir uma variação nas horas de entrada e saída do trabalhador, se toma por para- digma de um regime com flexibilidade de horário, não se compaginando o valor constitucional que informa o direito previsto no artigo 14.º da Lei da Liberdade Religiosa com as definições ou regimes estabelecidos no plano infraconstitucional pelo legislador ordinário – de aplicação limitada ou circunscrita –, para mais prosseguindo estes, as mais das vezes, direitos e interesses diversos (como, designadamente, a maternidade, as responsabilidades familiares, a educação e formação do trabalhador) dos protegidos no artigo 41.º da Constituição Portuguesa. É que uma interpretação da lei consentânea com a Constituição – que protege, nos termos expostos, a liberdade religiosa dos indivíduos – não pode deixar de considerar incluídas no conceito de flexibilidade de horário (salvaguardada a possibilidade de compensação do trabalho não prestado em certo período) todas as situações em que seja possível compatibilizar a duração do trabalho com a dispensa do trabalhador para fins religiosos, operando-se, assim, a acomodação dos direitos fundamentais do trabalhador. Nesta abertura da leitura da norma legal em causa, em linha com a ampla proteção conferida pelo legislador constitucional ao direito de liberdade religiosa, não pode deixar de se compreender a organização do trabalho em turnos, que, pela sua configuração rotativa e variável designadamente quanto à afetação de trabalhadores a cada turno, possibilitaria, in casu , a acomodação das práticas religiosas dos trabalhadores para efeitos da dispensa do trabalho em certos períodos ou dias ditados pelas crenças professadas, sem prejuízo da compensação devida (por via da prestação efetiva do trabalho). É que a configuração rotativa e variável do regime de horário por turnos (e, assim, «flexível») habilita soluções que vão ao encontro da letra e do espírito da lei, com vista à criação, sempre que possível, das condições favoráveis ao exercício da liberdade religiosa dos trabalhadores, pelo que, diversamente dos limitados termos da interpretação normativa feita no aresto recorrido, não se considera aquele regime excluído da previsão da norma. Outros regimes poder-se-iam considerar abrangidos por aquela previsão legal, designadamente, os regi- mes de horários desfasados, de tempo parcial, de jornada contínua ou de isenção de horário, previstos no Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, para a Administração Pública, ou, no âmbito das relações jurídico- -laborais privadas, o trabalho a tempo parcial para os trabalhadores com responsabilidades familiares (artigo 55.º do Código do Trabalho) ou o regime de isenção de horário previsto no artigo 218.º (também do Código do Trabalho), não se esgotando nestes exemplos. Uma interpretação constitucionalmente conforme da Lei da Liberdade Religiosa, quanto ao seu artigo 14.º, para mais propiciada pela falta de uma definição rígida e fechada do conceito de flexibilidade de horá- rio, em face da liberdade fundamental prevista no artigo 41.º da Constituição, não pode deixar de apontar para uma mais elevada proteção deste direito fundamental, irradiando o seu efeito para as relações laborais, de modo a entender-se caber também aos empregadores a procura de soluções gestionárias de organização laboral que acautelem o exercício de direitos fundamentais pelos trabalhadores, neste caso, o direito à liber- dade religiosa. Aliás, também noutras situações previu o legislador o dever de a entidade empregadora proceder à acomodação de outros direitos fundamentais dos trabalhadores, como ilustrado com a previsão específica de obrigação de ajustamento do horário dos trabalhadores estudantes (artigo 90.º do Código do Trabalho), ou com a formulação mais genérica por via da obrigação de ponderação de direitos dos trabalhadores e de circunstâncias relevantes aquando da fixação dos horários de trabalho, nos termos cometidos ao empregador pelo artigo 212.º, n.º 2, do Código do Trabalho ou aos dirigentes (da Administração Pública) pelo artigo 22.º do citado Decreto-Lei n.º 259/98.

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