TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014
627 acórdão n.º 544/14 Considera-se que o direito em presença – o direito de o trabalhador reservar períodos de guarda impostos pela religião professada – decorre da proteção normativa da liberdade de religião (na sua dimensão externa) consagrada no artigo 41.º da Constituição portuguesa. Assim, em face da tutela conferida pelo Direito interno português – ao nível constitucional – o que cumpre ponderar é se das normas contidas no artigo 14.º, n.º 1, da Lei da Liberdade Religiosa resulta um nível adequado de proteção do direito em presença. Esta preocupação tanto mais se justifica quanto se entenda que uma tutela jurídica adequada da liber- dade religiosa não pode deixar de contemplar a proteção da sua dimensão externa. Como escreve Jónatas Machado ( Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva – Dos direitos de verdade aos direitos dos cidadãos, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, pp. 222-223), esclarecendo o sentido da unidade essencial entre crença e conduta, «(…) a liberdade religiosa não seria adequadamente tutelada se admitisse uma tão estrita como simplificadora bipolaridade entre crença (belief ) e conduta (action) , que resultasse numa gene- rosa proteção da primeira e na desvalorização da segunda. (…) Compreende-se que as condutas coloquem mais problemas jurídicos do que as crenças em si. No entanto, a construção dogmática de uma teoria das restrições à liberdade religiosa com base na distinção entre umas e outras teria como consequência a descaracterização do fenómeno religioso e a subversão com- pleta, ou o esvaziamento, do programa normativo que a Constituição lhe faz corresponder. Este encara a religião como uma unidade incindível entre convicções e práticas religiosas (cfr. 41.º-2). (…) As convicções religiosas, como também as convicções de outra natureza, encerram, frequentemente, a assunção íntima e vital de um compromisso existencial e ético, com significativas repercussões compor- tamentais nos planos político, social, cultural, económico, etc.. Se assim é, tais convicções não podem ser artificialmente desligadas da ação humana em que se concretizam e manifestam, juntamente com a qual se subsumem a uma realidade incindível: o fenómeno religioso. Daqui deriva, em boa parte, o relevo jurídico- -constitucional que este apresenta. Compreensivelmente, em nome da proteção do indivíduo, da unidade e integridade da sua personalidade moral, a liberdade religiosa deve proteger a conduta religiosa, a liberdade de atuação e autoconformação com as próprias convicções, numa medida tão ampla quanto o permita uma ponderação de bens constitucionalmente saudável.». Por quanto fica exposto, não pode deixar de se conferir relevo ao papel do Estado na efetivação das liber- dades protegidas pelo artigo 41.º, da Lei Fundamental, em especial da liberdade de religião. Tendo o mesmo por referência, considera-se que cabe primacialmente ao Estado proteger as condutas ditadas por crenças, não apenas no cumprimento de um dever de abstenção (não ingerência), mas também por via da remoção dos obstáculos e da criação das condições – no plano social – mais favoráveis ao exercício da liberdade reli- giosa. Retomando o Acórdão n.º 174/93, «(…) o Estado não confessional deve respeitar a liberdade religiosa dos cidadãos. Mas ele só respeita esta liberdade se criar as condições para que os cidadãos crentes possam observar os seus deveres religiosos – permitindo-lhes o exercício do direito de viverem na realidade temporal segundo a própria fé e de regularem as relações sociais de acordo com a sua visão da vida e em conformidade com a escala de valores que para eles resulta da fé professada.». Assim também o Acórdão n.º 423/87: «(…) a dimensão real da liberdade religiosa depende fundamentalmente das situações sociais que permitem ou impedem o seu desfrute existencial como opções reais, competindo ao Estado, enquanto instrumento ao serviço dos valores e interesses da sociedade, assumir a obrigação de garantir a formação e o desenvolvimento livre das consciências, nomeadamente no plano da sua vivência religiosa.» Na dimensão externa da liberdade de religião – o direito de agir em conformidade com as próprias convicções religiosas – o fenómeno religioso não deixa de ter impacto no âmbito social, não se confinando à relação estabelecida entre o indivíduo e os poderes públicos e assim a tutela constitucional da liberdade religiosa não fica confinada à proteção do crente relativamente a ingerências ou ameaças dos poderes públi- cos. Uma tutela constitucional ampla dos direitos liberdades e garantias – e da liberdade de religião em especial – seria coartada de uma significativa parte da proteção conferida pela Constituição se compreendida apenas na vertente da defesa dos titulares do direito de liberdade religiosa contra o Estado. Enquanto valor constitucionalmente consagrado, com eficácia irradiante, a liberdade de religião informa também as relações
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=