TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014

626 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL sistemas de proteção transnacionais, em especial regionais, realizam os direitos tutelados enquanto standards mínimos, com vista à sua máxima efetividade, prevendo inclusivamente (e é o caso do sistema de proteção da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia) que não é prejudicada uma tutela mais ampla que possa ser conferida ao direito em causa no plano interno de cada Estado, no nível mais alto de proteção que decorra das respetivas Constituições (cfr. artigo 53.º da CDFUE). Por isso, o entendimento conferido ao âmbito da tutela internacional regional da liberdade religiosa em face da sua invocação para a observância de períodos de guarda do trabalhador, por aplicação do artigo 9.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não prejudica a tutela constitucional que agora é requerida da liberdade religiosa prevista no artigo 41.º da Constituição. Ilustrativo é o exemplo que se recolhe, também em matéria de liberdade religiosa, das diferentes soluções jurisprudenciais encontradas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e pelo Tribunal Constitucional alemão em face da pretensão, fundada em convicções religiosas muçulmanas e judaicas, de serem exercidos rituais de abate e corte de carne de animais sem observância das regras gerais que regem a atividade dos talhantes de carne para consumo humano. O Tribunal Constitucional alemão, em decisão datada de 15 de janeiro de 2002, considerou que ao abrigo da liberdade religiosa e da liberdade de profissão, um talhante muçulmano (à semelhança do já permitido nos talhos judeus) poderia beneficiar da exceção às regras gerais, de modo a seguir os ritos islâmicos de corte da carne de animais, seguindo a ideia da necessidade de acomo- dação das práticas religiosas compaginadas com os objetivos de proteção dos animais. Esta decisão afasta-se do sentido do acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem proferido no âmbito do caso Asso- ciação Litúrgica Judaica Cha`are Shalom ve Tsedek v. França (n.º 27417/95). Aqui, não obstante o Tribunal ter considerado que o ritual de corte de carne correspondia a uma das manifestações da liberdade religiosa tutelada pelo artigo 9.º da CEDH, considerou que a recusa de autorização àquela associação religiosa para o exercício desse ritual não desrespeitava o artigo 9.º (isoladamente ou em conjunto com a proibição de discri- minação prevista no artigo 14.º, também da Convenção), já que não ficavam os membros daquela associação privados do direito de consumir carne tratada segundo os rituais da religião por outras associações religiosas a quem fora concedida a respetiva autorização, adotando uma posição mais restritiva do que a seguida pela justiça constitucional alemã (cfr. Christine Langerfeld, “Developments – Germany”, in International Journal of Constitutional Law, Vol. I, n.º 1, janeiro, 2003, pp. 141 e segs., pp. 143-145). Ora, da jurisprudência internacional regional relevante para a questão que nos ocupa importa sublinhar que, para a Comissão Europeia dos Direitos do Homem e para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o despedimento de um trabalhador que se ausenta do seu local de trabalho para respeitar o Sabbath ou para ir à mesquita rezar em conjunto com outros crentes, em determinados períodos do dia, não corresponde a uma violação do direito de liberdade religiosa nem consequentemente uma discriminação baseada nas cren- ças ou na religião do trabalhador, já que se entendeu não ser aquele despedimento motivado pelas convicções religiosas do trabalhador, mas sim pelo incumprimento de obrigações contratuais, por este voluntariamente assumidas, podendo, a todo o tempo, demitir-se ou fazer cessar a relação laboral e assim retomar de pleno o exercício da liberdade religiosa. Contudo, à luz da Constituição portuguesa, a tutela do trabalhador que exerce a sua liberdade religiosa afigura-se mais ampla do que a mera proteção contra as discriminações infundadas ou, se se quiser, funda- das em razões religiosas, e assim proibidas como causas de despedimento, cabendo ao legislador assegurar não apenas a igualdade dos trabalhadores (crentes e não crentes) contra ingerências discriminatórias, mas também o exercício da liberdade religiosa de que não podem nem devem abdicar simplesmente enquanto trabalhadores ou, mais precisamente, enquanto trabalhadores subordinados. Com efeito, sendo a dimensão religiosa do indivíduo uma das mais importantes dimensões da sua autonomia e personalidade, não é expec- tável que se possa exigir o apagamento ou neutralização sem mais dessa faceta da pessoa só e enquanto traba- lha (acrescente-se, para outrem), tomando-se sempre e em qualquer caso prevalecentes os deveres resultantes das obrigações contratuais.

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