TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014
623 acórdão n.º 544/14 Em termos objetivos, por um lado, a Constituição exige dos poderes públicos a neutralidade em matéria religiosa, num Estado laico e não confessional, com expressão no princípio da separação entre as igrejas e outras comunidades religiosas e o Estado (artigo 41.º, n.º 4), sendo que, por outro lado, uma leitura não rígida desse princípio pode «proteger uma robusta presença do fenómeno religioso na esfera pública, sem oficializar qualquer confissão religiosa nem pôr em causa os princípios básicos do Estado Constitucional» (Jónatas Machado, «a Jurisprudência Constitucional Portuguesa Diante das Ameaças à Liberdade Religiosa», cit. p. 133). Aqui se compreende o reconhecimento da religião – das religiões – e da sua importância social., como sublinhado na seguinte passagem do Acórdão n.º 174/93: «Com efeito, o Estado não pode fechar os olhos à dimensão social do fenómeno religioso (cfr. Juan Calvo Otero, “La Mencion Especifica de la Iglesia Catolica en la Constitucion Española”, in E. Garcia de Enterria / L. Sanchez Agesta e outros, El Desarollo de la Constitucion Española de 1978, Zaragoza, Pórtico, 1982, p. 152). Ultra- passada, no nosso país, a fase em que a separação entre o Estado e a Igreja significou um viver de costas voltadas e reconhecida que foi a necessidade de cooperação entre aquelas duas entidades, já que o crente é, simultaneamente, um cidadão, as necessidades religiosas converteram-se num bem jurídico que ao Estado cabe garantir e a liberdade religiosa, em critério básico orientador da ação dos poderes públicos face ao fenómeno religioso.» Na sua vertente subjetiva, a liberdade de religião é consagrada como direito fundamental, na parte dedi- cada no texto constitucional aos direitos, liberdades e garantias, precisamente no artigo 41.º da Constituição. Beneficia, enquanto liberdade forte, do regime material dos direitos, liberdades e garantias, previsto no artigo 18.º da Constituição, daqui resultando a aplicabilidade direta do artigo 41.º e a vinculação das entida- des públicas e privadas à liberdade religiosa (artigo 18.º, n.º 1), e, bem assim, a observância de um regime res- tritivo e garantístico quanto às restrições eventualmente operadas pelo legislador – e a este, em qualquer caso, reservadas (artigo 18.º, n. os 2 e 3). Especialmente forte, sublinhamos nós, pois insuscetível de afetação ( v. g. suspensão) em caso de declaração do estado de sítio ou de emergência (artigo 19.º, n.º 6, também da CRP). Nesta vertente subjetiva releva a dupla dimensão do direito fundamental à liberdade religiosa: interna e externa. A primeira garante um espaço de autonomia individual – reservado, íntimo, pessoalíssimo – de crenças, decorrente da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º) e ainda associado à liberdade de pensamento e ao desenvolvimento da personalidade, livre das ingerências dos poderes públicos e da coação de terceiros, inviolável na terminologia constitucional. A segunda faculta às pessoas o direito de agir em função dessas convicções e crenças, em liberdade, perante os poderes públicos e os outros e a possibilidade de exercício, também em liberdade, das atividades que correspondam a manifestações e expressões da religião professada, como o direito de culto, a reunião e manifestação pública com fins religiosos, o ensino confessional ou a divulgação da religião, mesmo com finalidades prosélitas. Assim, na síntese feita por Manuel Pires («Liberdade Religiosa e Benefícios Fiscais», in L iberdade Reli- giosa – Realidades e Perspetivas, Centro de Estudos de Direito Canónico, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1999, pp. 119-147, p. 123): «a liberdade religiosa traduz-se “no direito de toda a pessoa humana ao livre exercício da religião, segundo as exigências da sua consciência” (maneira positiva) ou “é a ausência de qualquer coação externa nas relações pessoais com Deus, que a consciência reivindica” (maneira negativa). E, por último, a liberdade religiosa implica (…) a autonomia do indivíduo não ad intra – “o Homem não está livre de obrigações no domínio das questões religiosas” – mas ad extra – “a sua liberdade é lesada quando ele não pode obedecer às exigências da sua consciência em matéria religiosa”». 8.2. A questão de constitucionalidade objeto do presente recurso prende-se essencialmente com a última dimensão assinalada do direito fundamental à liberdade religiosa. Com efeito, é invocado o direito de exercí- cio do culto e o direito de guarda imposto pela religião professada pela recorrente, in casu , desde o pôr do sol de sexta-feira até ao pôr do sol de sábado, de modo a justificar a não permanência no local de trabalho nesse período. A decisão recorrida expressamente afirma que «como resultou provado, no período compreendido
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