TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014

621 acórdão n.º 544/14 e meios indispensáveis à realização (cfr. A. Fernandez-Miranda Campoamor, «Estado laico y libertad religiosa», in Revista de Estúdios Políticos , n.º 6, p. 68). Contudo, se a liberdade religiosa deve entender-se não como uma mera independência, mas como uma autên- tica situação social, a separação e a não confessionalidade implicam a neutralidade religiosa do Estado, mas não já o seu desconhecimento do facto religioso enquanto facto social. O Estado não é um ente alheio aos valores e interesses da sociedade, antes constitui um instrumento ao seu serviço, assumindo a obrigação de garantir a formação e o desenvolvimento livre das consciências (católicas ou ateias) e assume esta obrigação em função da procura social. (…) Não se trata de proteger ou privilegiar uma qualquer confissão religiosa, mas sim de garantir o efetivo exercício da liberdade religiosa, como consequência de uma situação e de uma exigência social.» A mesma linha de argumentação foi retomada no Acórdão n.º 174/93, aí se defendendo que: «(…) O artigo 41.º, n.º 1, da Constituição consagra a liberdade de religião como um direito fundamental do cidadão, a qual se caracteriza como a liberdade de ter uma religião, de escolher uma determinada religião e de a praticar só ou acompanhado por outras pessoas, de mudar de religião e de não aderir a religião alguma (cfr. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1984, p. 250; António Leite, “A Religião no Direito Constitucional Português”, in Estudos sobre a Cons- tituição, Vol. II, Lisboa, Petrony, 1978, p. 265 segs.; José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo , 9.ª edição, São Paulo, Malheiros Editores, 1992, p. 226; e Luis Vicente Cantín, Naturaleza, Contenido y Extensión del Derecho de Libertad Religiosa, Madrid, Civitas, 1990, p. 18). A liberdade de religião comporta simultaneamente uma dimensão negativa e uma dimensão positiva (cfr. Jorge Miranda, “Direitos Fundamentais – Liberdade Religiosa e Liberdade de Aprender e Ensinar”, in Direito e Justiça, Vol. III, 1987-1988, p. 50). Na primeira dimensão, a liberdade de religião implica uma superação do poder que o príncipe detinha de definir a religião dos súbditos, de acordo com a máxima “cuius regio eius religio”, a qual constituía uma carac- terística do Estado absolutista dos séculos XVII e XVIII (cfr. Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado, trad. portuguesa, Lisboa, 1974, p. 136), e caracteriza-se, acima de tudo, por uma “imunidade de coação”, no sentido de que nenhuma entidade pública ou privada pode impor a outrem a adesão e a prática de uma qualquer religião. Na sua componente negativa, a liberdade religiosa garante ao cidadão uma “esfera de autonomia frente ao “Estado” e implica que este não pode arrogar-se o direito de impor ou de impedir a profissão e a prática em público da religião de uma pessoa ou de uma comunidade. Da garantia constitucional da liberdade de religião decorre que o Estado deve assumir-se, em matéria religiosa, como um Estado neutral (princípio da separação entre as igrejas e o Estado – artigo 41.º, n.º 4, da Constituição). Aquele não pode arvorar-se em Estado doutrinal, nem atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura de acordo com diretrizes religiosas (artigo 43.º, n.º 2, da Lei Fundamental) ou de organizar e manter um ensino público confessional (princípio da não confessionalidade do ensino público – artigo 43.º, n.º 3, da Constituição). Com efeito, qualquer forma de dirigismo cultural fere o bem comum e mina os alicerces do Estado de direito. O Estado não pode, pois, impor aos cidadãos quaisquer formas de conceção do homem, do mundo e da vida. O facto, porém, de o Estado dever observar quanto às igrejas uma regra de separação e, quanto ao ensino público, uma postura de a – confessionalidade não significa que ele não possa – e deva – colaborar com as igrejas na ministração de ensino religioso nas escolas públicas. A circunstância de o Estado ser um Estado não confessional (princípio da laicidade) não implica que este, sob pena de vestir a roupagem de um Estado doutrinal, haja de ser um Estado agnóstico ou de professar o ateísmo ou o laicismo. O Estado não confessional deve respeitar a liberdade religiosa dos cidadãos. Mas ele só respeita esta liber- dade se criar as condições para que os cidadãos crentes possam observar os seus deveres religiosos – permitindo-lhes o exercício do direito de viverem na realidade temporal segundo a própria fé e de regularem as relações sociais de

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