TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014

586 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL a mera proteção contra as discriminações infundadas ou, se se quiser, fundadas em razões religiosas, e assim proibidas como causas de despedimento. III – Na dimensão externa da liberdade de religião – o direito de agir em conformidade com as próprias convicções religiosas – o fenómeno religioso não deixa de ter impacto no âmbito social, não se confi- nando à relação estabelecida entre o indivíduo e os poderes públicos e assim a tutela constitucional da liberdade religiosa não fica confinada à proteção do crente relativamente a ingerências ou ameaças dos poderes públicos. Uma tutela constitucional ampla dos direitos liberdades e garantias – e da liberdade de religião em especial – seria coartada de uma significativa parte da proteção conferida pela Cons- tituição se compreendida apenas na vertente da defesa dos titulares do direito de liberdade religiosa contra o Estado. Enquanto valor constitucionalmente consagrado, com eficácia irradiante, a liberdade de religião informa também as relações sociais. IV – Do quadro constitucional de tutela da liberdade de religião decorrem os princípios de tolerância e de acomodação dos direitos derivados do exercício da religião no âmbito social como vetores do pró- prio programa normativo constitucional, que não se limita à afirmação de que o reconhecimento da liberdade religiosa no mundo laboral se efetua tão só através do princípio da igualdade e não discri- minação. Assim, a proteção constitucional do direito à liberdade religiosa procura realizar-se na possi- bilidade real – e não apenas virtual – de o exercício desse direito ter lugar também perante entidades empregadoras (aqui se incluindo o Estado, na posição de Estado empregador e as entidades privadas), não podendo ignorar-se que desse exercício possa resultar a colisão com outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos – como é o caso. V – O juízo de concordância dos direitos e interesses em presença – de um lado, a liberdade religiosa do trabalhador, de outro lado, o direito de iniciativa económica do empregador, aqui incluído o direito de organização do tempo de trabalho (também contido no princípio da liberdade de organização empresarial) e, bem assim, do estabelecimento de um horário de trabalho – não pode deixar de ser feito pelo legislador, pois a liberdade religiosa (na sua vertente externa) não é um direito absoluto e irrestrito, mesmo que da letra do n.º 1 do artigo 41.º da Constituição nada resulte a esse respeito. VI – Contudo, a ponderação do legislador na criação das condições para a realização do direito de liberdade religiosa em face desses outros direitos não poderá consubstanciar a prevalência destes nas situações de possível conflito que daquela resultem; isto, sem que observe o princípio da proporcionalidade nas restrições que se entendam necessárias e justificadas ao direito de liberdade religiosa dos trabalhadores para a realização desses outros direitos, aqui traduzidos na liberdade de iniciativa económica privada. VII – Ora, uma interpretação do requisito da flexibilidade do horário de trabalho (de que dependeria tam- bém o requisito da compensação do período de trabalho não prestado), para os efeitos previstos no artigo 14.º, n.º 1, da Lei da Liberdade Religiosa – disposição que estabelece as condições para que um trabalhador possa, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhe sejam prescritos pela confissão que professa – apenas reportada a uma determinada modalidade de horário laboral (com variação na hora de entrada e saída), inteiramente na disponibilidade da entidade empregadora e sem qualquer relação com a possibilidade de o trabalhador crente observar os ditames da sua religião que possam de algum modo conflituar com o esquema de organização do tempo de trabalho a que se subordina, descarac- teriza a ampla proteção conferida pela Constituição à liberdade religiosa, em várias das dimensões

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