TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014
553 acórdão n.º 482/14 confiança não poderia deixar de ser abalada se o cidadão que recorre à justiça não pudesse ter a certeza de não ser confrontado com um tribunal designado em função das partes ou do caso concreto. A garantia do “juiz natural” tem, assim, um âmbito de proteção que é, em larga medida, configurado ou conformado normativamente – isto é, pelas regras de determinação do juiz “natural”, ou “legal” (assim G. Britz, ob. cit, p. 574, B odo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte II, 14.ª edição, Heidelberg, 1998, p. 269). E, independentemente da distinção no princípio do juiz legal de um verdadeiro direito fundamental subjetivo de dimensões objetivas de garantia, pode reconhecer se nesse princípio, desde logo, uma dimensão positiva, consistente no dever de criação de regras, suficientemente determinadas, que permitam a definição do tribunal competente segundo características gerais e abstratas”». Ao nível processual, o princípio do juiz natural constitui emanação do princípio da legalidade em maté- ria penal e do princípio do Estado de direito no domínio da administração da justiça, refletindo uma garantia dos direitos das pessoas perante a justiça penal. Ao exigir-se a determinabilidade do tribunal a partir de regras legais, assegura-se também a independência e a imparcialidade do julgador (artigo 203.º da Constituição). Trata-se, portanto, não só de garantir a ausência de arbitrariedade ou discricionariedade na atribuição de um concreto processo a determinado(s) juiz(es) (dimensão objetiva, incluindo o aspeto de organização interna dos tribunais), como ainda de assegurar a proibição de afastamento das regras referidas, num caso individual – o que configuraria uma determinação ad hoc do tribunal (dimensão negativa). 32. Ora, não deve suscitar dúvida a aplicabilidade das duas vertentes deste princípio também na fase instrutória do processo penal. Encontrando-se o artigo 32.º, n.º 9, da Constituição entre as garantias do pro- cesso criminal, a exigência de independência e imparcialidade, bem como a necessidade de evitar influências externas sobre o conteúdo das decisões, através da escolha do decisor, não podem deixar de valer, para além da fase de julgamento, também para a atuação judicial durante o inquérito e a instrução penais. De igual modo, também nas fases iniciais do processo penal importa ainda acautelar a dimensão negativa do princípio decorrente da sua natureza de direito fundamental subjetivo. De facto, o «juiz legal é não apenas o juiz da sentença em 1.ª instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência constitucional vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais coletivos» [vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 207; referindo que o princípio se aplica igual- mente ao juiz de instrução, vide, ainda Figueiredo Dias, Sobre o sentido (…), cit., p. 83, nota 3)]. 33. Aplicando-se no domínio da instrução o princípio do juiz natural, deve reconhecer-se que se encon- tra fixado por lei anterior aos factos que integram o objeto dos autos o critério de definição das competências do Tribunal Central de Instrução Criminal (artigo 80.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais). Não existiria, por esta via, violação deste princípio. No entanto, o princípio do juiz natural, como se viu, implica mais do que este conteúdo – dele decorre a necessidade de obstar a práticas de desaforamento. De facto, importa reconhecer que «o princípio do juiz legal não obsta a que uma causa penal venha a ser apreciada por tribunal diferente do que para ela era competente ao tempo da prática do facto que constitui objeto do processo; só obsta a tal quando, mas também sempre que, a atribuição de competência seja feita através da criação de um ad hoc (isto é de exceção), ou da definição individual (e portanto arbitrá- ria) da competência, ou desaforamento concreto (e portanto discricionário) de uma certa causa penal, ou por qualquer outra forma discriminatória que lese ou ponha em perigo o direito dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial» (vide Jorge de Figueiredo Dias, «Sobre o sentido do princípio jurídico-cons- titucional do ‘juiz natural’», in Revista de Legislação e de Jurisprudência , ano 111.º, n.º 3615, pp. 83 e segs.). O princípio do juiz natural obriga, para impedir as situações de desaforamento assinaladas, a disponi- bilização de mecanismos de tutela do direito ao juiz definido por lei. Ora, estes mecanismos de tutela não se podem bastar com a mera possibilidade de arguição da incompetência do tribunal, junto do juiz de instrução que o arguido alega ser incompetente, que aprecia a questão em primeira e última instância sem hipótese de
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