TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014
531 acórdão n.º 482/14 66.º – Ora, a norma em causa ao proibir a recorribilidade ordinária num caso de potencial omissão da pronún- cia quanto aos elementos exigidos no artigo 283.º, n.º 3, alínea b) , aplicável e x vi do artigo 308.º, n.º 2, ambos do CPP, não permite uma tutela efetiva dos direitos de defesa e, concretamente, do exercício do direito ao contraditó- rio face a uma pronúncia que, atendo o âmbito de aplicabilidade da norma, poderia deixar de ter qualquer “(…) narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”, sem que ao arguido fosse assegurado um só grau de recurso. 67.º – Neste cenário (potencialmente admitido pela previsão da norma aplicada) ao arguido não são dadas “todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder insti- tucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigual- dade de armas.”, vendo-se o arguido sujeito a julgamento com base numa acusação/pronúncia que não lhe confere elementos suficientes para se deixar contrariar ou porventura compreender. 68.º – A relevância da nulidade decorrente da insuficiência da decisão de pronúncia quanto aos elementos exigidos no artigo 283.º, n.º 3, alínea b) , aplicável e x vi do artigo 308.º, n.º 2, ambos do CPP, exige, de forma necessária a assegurar os direitos de defesa do arguido, que a decisão que aprecie tal questão seja recorrível, sob pena de se possibilitar, por via normativa, a definitiva imputação e julgamento do arguido por factos não concre- tizadores dos elementos exigidos no artigo 283.º, n.º 3, alínea b) , aplicável e x vi do artigo 308.º, n.º 2, ambos do CPP, solução que põe em causa o direito a um pleno contraditório, pressuposto de um processo justo e equitativo (due process of law). 69.º – Como exercer, de forma suficiente e leal, o direito de defesa do arguido, se a pronúncia proferida nada esclarecer (como o arguido reputa ser o caso), se a mesma recorrer a generalismos e expressões propositadamente abrangentes, que nada objetivam e tudo permitem? 70.º – O artigo 6.º, n.º 3, da CEDH, sob a epígrafe “direito a um processo equitativo”, estabelece, que “o acusado tem, como mínimo, os seguintes direitos: a) ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada; b) dispor do tempo e dos meios necessários para a preparação da sua defesa; e) fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo.” 71.º – Tendo o processo criminal estrutura acusatória, o princípio da acusação é nele fundamental. É a acusa- ção que fixa o thema probandi e o thema decidendi . Ficando por cumprir o poder-dever que recai sobre a Acusação, ficará o arguido numa situação inadmissível de ter que, ele próprio, delimitar e indicar os factos e provas que sob ele recaem para, de imediato, sobre eles poder exercer o seu direito ao contraditório – como, aliás, acima ficou já demonstrado à saciedade. 72.º – Quid iuris se o arguido for sujeito a julgamento e tiver de se “defender” face a uma pronúncia omissiva quanto a factos e circunstâncias concretas e se, após isso, vier a ser absolvido justamente porque da mesma nenhum facto resultou que pudesse estribar uma sua condenação? A resposta é simples, o arguido terá sido acusado, julgado e absolvido, à luz de uma pronúncia constitucionalmente inaceitável (“nula” nos dizeres do legislador ordinário), sem que se tenha podido defender de facto, e sem que no final lhe assista já direito a recorrer, por ausência de legitimidade ou interesse processual. Ou seja, a norma aplicada permite a institucionalização, ao menos potencial, de uma situação de total indefesa e a subversão do princípio do acusatório. 73.º – Pelo exposto, a norma aplicada, ao admitir na sua previsão tal hipótese sem que face à mesma faculte o direito ao recurso ao arguido, viola os direitos de defesa, e ao recurso do arguido, e o direito à instrução e à efeti- vidade do direito ao contraditório face à pronúncia, em violação dos artigos 18.º, n. os 2 e 3, 20.º, n.º 4 e 5, e 32.º, n. os 1, 5, e 9, todos da CRP, e a tutela efetiva do direito previsto no artigo 6.º, n.º 3, alínea a) , da CEDH.
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