TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014

445 acórdão n.º 395/14 Como começou por se afirmar no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 231/79, de 24 de julho, que introduziu o ilícito de mera ordenação social na ordem jurídica portuguesa, «hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contraordenação “é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal” […]. Está em causa um ordenamento sancionatório distinto do direito criminal. Não é, por isso, admissível qualquer forma de prisão preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a expiação da censura ético pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do direito de ordenação social é a coima, sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridade administrativa, com o sentido dissuasor de uma advertência social, pode, consequentemente, admitir-se a sua aplicação às pessoas coletivas e adotar-se um processo extremamente simplifi- cado e aberto aos corolários do princípio da oportunidade». Admite-se por isso uma variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal e uma autonomia relativa do direito das contraordenações em matérias como as do âmbito de vigência da lei, da responsabilização das pessoas coletivas, da culpa, do erro, da autoria e do concurso (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra, 2001, p. 150). No que se refere à culpa, embora o artigo 1.º do RGCO caracterize a contraordenação como «o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima», não pode falar-se numa culpa em sentido jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor, que serve como especial advertência ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas (Figuei- redo Dias, ob. cit. , p. 151; O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal, p. 331). Por outro lado, como a doutrina e a jurisprudência constitucional têm sublinhado, não é o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição, acrescentado pela revisão constitucional de 1989 – que garante os direitos de audiência e defesa em processos de contraordenação e demais processos sancionatórios –, que permite estender ao ilícito con- traordenacional a generalidade do regime substantivo em matéria penal. Essa disposição releva apenas no plano adjetivo e significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção contraordenacional ou adminis- trativa sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, p. 363, e Acórdãos do Tribunal Constitucional n. os 160/04 e 161/04). Tem-se entendido, de todo o modo, que os princípios da constituição criminal, e especificamente os constantes do artigo 29.º da Constituição, apesar de se restringirem pelo seu teor textual ao direito criminal propriamente dito (crimes e respetivas sanções), devem no essencial valer, por analogia, para todos os domínios sancionatórios, designadamente o ilícito de mera ordenação social. Assim se compreendendo que o RGCO consagre o princípio da legalidade (artigo 2.º), o princípio da não retroatividade (artigo 3.º, n.º 1) e o princípio da aplicação retroativa da lei mais favorável ao arguido (artigo 3.º, n.º 2) (cfr. os Acórdãos do Tribunal Constitucional n. os 227/92, 574/95 e 160/04, na linha do entendimento também sufragado por Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, I vol., 4.ª edição, Coimbra, p. 498). No entanto, mesmo nesta perspetiva, nada permite concluir, dada a diferença de regimes que regem os dois géneros de ilícitos, que a intransmissibilidade de um juízo hipotético ou definitivo de censura ética, consubstan- ciado numa acusação ou condenação penal, tenha de implicar, por analogia ou identidade de razão, a intransmis- sibilidade de uma acusação ou condenação por desrespeito de normas de ordenação administrativa que não pos- suem a mesma ressonância ética (cfr., neste sentido, os citados Acórdãos do Tribunal Constitucional n. os 160/04 e 161/04).» Afastado o parâmetro constitucional do n.º 3 do artigo 30.º da Constituição, o Tribunal considerou igualmente que a norma questionada não merecia censura face aos princípios da culpa, da igualdade e da

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