TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014
437 acórdão n.º 394/14 «(…) 6. Nesta situação não bastará, porque não seria adequado à repartição dos “custos do conflito” tal como ele, no plano constitucionalmente relevante, se apresenta perante a norma em apreciação, proceder à simples transposição da ponderação que foi feita e sumariamente se expôs quando estava em causa a satisfação de uma dívida indiferen- ciada. E não é adequado porque o elemento constitucional que aí foi decisivo (o princípio da dignidade da pessoa humana) não pode aqui ser lançado a um só prato da balança, uma vez que a insatisfação do direito a alimentos atinge diretamente as condições de vida do alimentando e, ao menos no caso das crianças, comporta o risco de pôr em causa, sem que o titular possa autonomamente procurar remédio, se não o próprio direito à vida, pelo menos o direito a uma vida digna. O dever de alimentos a cargo dos progenitores, um dos componentes em que se desdobra o dever de assistência dos pais para com os filhos menores, não pode reduzirse a uma mera obrigação pecuniária, quando se trata de pon- deração de constitucionalidade dos meios ordenados a tornar efetivo o seu cumprimento. Ainda que se conceba o vínculo de alimentos como estruturalmente obrigacional, a natureza familiar (a sua génese e a sua função no âmbito da relação de família) marca o seu regime em múltiplos aspetos ( v. g. tornando o direito correspondente indisponível, intransmissível, impenhorável e imprescritível – cfr. maxime o artigo 2008.º do Código Civil). Mesmo quando já tenha sido objeto de acertamento judicial, isto é, quando corporizado, para o pai que não tem a guarda, numa condenação a uma prestação pecuniária de montante e data de vencimento determinados, do lado do progenitor inadimplente não está somente em causa satisfazer uma dívida, mas cumprir um dever que surge constitucionalmente autonomizado como dever fundamental e de cujo feixe de relações a prestação de ali- mentos é o elemento primordial. É o que diretamente resulta de no n.º 5 do artigo 36.º da Constituição se dispor que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos. (…) Não é, portanto, pela perspetiva da garantia contida no artigo 62.º da Constituição, aplicável aos direitos de crédito, que a posição do filho, credor da prestação de alimentos, deve ser observada no momento da compatibi- lização prática com a salvaguarda do princípio da dignidade da pessoa do progenitor afetado pela dedução no seu rendimento periódico para realização coativa do direito daquele. (…) Deste modo, o critério de determinação da parcela do rendimento do progenitor que não pode ser afetado ao pagamento coativo da prestação de alimentos devidos ao filho não pode alcançar-se por equiparação ao montante do salário mínimo nacional, montante este que pode servir de referencial quando os “custos do conflito” se hão de repartir, em sede constitucional, entre a preservação de um nível de subsistência condigna do devedor e a garantia do credor à satisfação do seu crédito, tutelada pelo artigo 62.º, n.º 1 da Constituição, mas não quando entram em colisão o dever e o direito correlativo de manutenção dos filhos pelos progenitores, situação em que, de qualquer dos lados, fica em crise o princípio da dignidade da pessoa humana, vetor axiológico estrutural da própria Cons- tituição. De um modo ainda aproximativo, pode reter-se a ideia geral de que, até que as necessidades básicas das crianças sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimento do que o requerido para providenciar às suas necessidades de autossobrevivência. 7. Porém, não basta concluir que o critério do salário mínimo nacional – na designação atual, retribuição mínima mensal garantida (artigo 266.º do Código do Trabalho) – é imprestável como referencial de isenção de penhorabilidade em casos deste género, para obter resposta à questão de constitucionalidade colocada. Efetiva- mente, com isso admite-se que não ofende a Constituição operar a dedução forçada, para satisfação da prestação alimentar a favor do filho menor, em rendimento do progenitor que não ultrapasse o correspondente ao valor daquela retribuição mínima, mas continua por resolver o problema concretamente colocado de saber se e a que nível deve considerar-se constitucionalmente vedada essa dedução em pensão social de invalidez do devedor de alimentos.
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