TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 90.º Volume \ 2014
210 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL referidas no seu n.º 9, deixando de fora todos os outros trabalhadores, designadamente os trabalhadores com remunerações por prestação de atividade laboral subordinada nos setores privado e cooperativo, bem como os trabalhadores por conta própria. Neste contexto, a apreciação da sua conformidade constitucional apela, assim, diretamente, ao parâmetro da igualdade perante a lei (artigo 13.º da Constituição). A apreciação que faço da compatibilidade desta norma com o princípio da igualdade tem como ponto de partida que o seu objetivo (ou o seu fim) é a redução do défice. O facto de este fim decorrer do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) ou do Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária (o designado “Tratado Orçamental”) é irrelevante para estes efeitos, pois ambos os instrumentos preveem a necessidade da sua prossecução. Para alcançar este fim, o legislador escolheu a via da redução da despesa, em alternativa à via do aumento da receita. A circunstância de a redução da despesa ser uma alternativa para alcançar o fim visado pelo legislador, demonstra que esta constitui um meio, uma via instrumental, e não um fim em si mesmo. É importante referir que a minha análise é condicionada pelo fim da norma em causa, pelo que as conclusões a que chego podem ser diferenciadas quanto a outra norma, se o seu fim for diferente – por exemplo, uma coisa é uma medida orçamental, de redução do défice, outra, bem diferente, será uma reforma estrutural da tabela salarial dos trabalhadores da Administração Pública. 9. Sendo incontroverso que o objetivo de redução do défice pode ser alcançado através da redução da despesa, reduzir salários dos funcionários públicos para prosseguir aquele fim é, em si mesma, uma opção racional. A determinação, pelo período correspondente ao ano orçamental, de um corte nos salários dos trabalhadores do sector público tendo em vista a diminuição do défice do orçamento geral de Estado cons- titui, pois, uma razão justificativa de tratamento diferenciado suficientemente racional para superar o teste do arbítrio do princípio da igualdade (a “versão fraca” do escrutínio). Assim, no confronto das razões que sustentam o tratamento diferenciado (redução dos salários dos trabalhadores do sector público) com o fim da norma (redução do défice) importa concluir pela racionalidade ou não arbitrariedade da diferenciação. 10. No entanto, acompanho o Acórdão no sentido de ser de rejeitar a sujeição da norma em apreciação ao mero teste do arbítrio. De facto, esta norma introduz uma diferenciação de tratamento entre grupos de pessoas, o que torna insuficiente o afastamento do arbítrio para afirmar a sua validade constitucional. Qual- quer diferenciação de tratamento baseada em características referidas às pessoas ou às situações em que se encontram, não pode bastar-se com um controlo de mera evidência, ou de ausência de arbítrio. A suficiência de um tal controlo seria incongruente com a dignidade da pessoa humana (artigo 1.º). A exigência de uma análise mais densa e rigorosa impõe-se com maior grau de premência quando, como no caso em presença, são afetados direitos fundamentais. Com efeito, através da norma em análise, é afetado o direito fundamental à retribuição do trabalho consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a) , da Constituição. De facto, o valor ou o montante das remunerações dos trabalhadores não pode deixar de estar abrangido pela esfera de proteção do direito fundamental referido pois representa um elemento essencial desse direito. Se assim não fosse, a esfera de proteção ficaria comprimida a um conteúdo mínimo, de forma incompreensível e injustificável. É importante referir que defender que o quantum das remunerações está abrangido pela esfera de proteção do direito fundamental em causa não equivale a defender a irredutibilidade dos montantes em causa. A redução das remunerações representa uma restrição àqueles direitos que é possível (como, regra geral, é possível restringir um direito fundamental) desde que obedeça aos parâmetros constitucionais apli- cáveis, designadamente o da igualdade. Sem se questionar a liberdade de conformação do legislador na definição de medidas que visem pros- seguir um fim público, como a aqui sob escrutínio, importa, todavia, apelar a um critério mais exigente de apreciação da sua conformidade constitucional ao nível do princípio da igualdade (uma “versão forte”) que, nessa medida, acaba por se revelar, legitimamente, como mais constrangedor daquela liberdade.
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