TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 89.º Volume \ 2014
605 acórdão n.º 202/14 Tal autolimitação do controlo está em harmonia com a conclusão a que se chegou relativamente à não verificação de uma violação do princípio da separação dos poderes. Com efeito, a partir do momento em que se entende que o ato legislativo em questão – a Lei n.º 14/2010, de 23 de julho – é, para todos os efeitos, uma lei, na aceção constitucional do termo, e que a função legislativa do Estado é caracterizada pela autorrevisibilidade, a qual, por sua vez, é fundada por um elemento que integra de modo estruturante o con- ceito constitucional de democracia – a regra da maioria –, é incongruente pôr em causa a representação do interesse público tal como revelada através do processo político-legislativo. A “garantia” de que o legislador parlamentar, quando delibera, o faz de acordo com uma certa representação do interesse público – no quadro da Constituição – dá-a a Lei Fundamental através da regra da deliberação maioritária. Fá-lo não por razões pragmáticas (porque não haja outro instrumento, numa sociedade plural, para que se obtenha o consenso quanto ao que é o “interesse público”) nem por razões de ciência (porque o acordo da maioria seja sinal de informação fiável quanto ao que é o interesse público) mas por razões de valor. O acordo do maior número quanto ao sentido de certa deliberação permite que, valorativamente, se identifique tal sentido com a pros- secução do interesse público. Quer isto dizer que não pode afirmar-se que uma “discordância político-partidária” sobre certo aspeto concreto, mas relevante, de prossecução de políticas públicas portuárias, se legitimamente expressa por deli- beração do parlamento através de maioria, consubstancie, à evidência, uma forma “menor” ou “enfraque- cida” de representação do interesse público por parte do legislador. Nada, na Constituição, permite o retirar de semelhante conclusão. Porque assim é, inexiste qualquer violação do princípio da continuidade. 3. Resta saber se a revogação retroativa do Decreto-Lei n.º 188/2008, operada pela norma do artigo 2.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, afeta ilegitimamente posições jurídicas subjetivas do particular, o que convoca a dogmática da proteção da confiança. Por atribuir particular relevo à “retroatividade” da decisão revogatória contida na Lei n.º 14/2010 e por acolher com particular saliência as figuras dogmáticas da retroatividade autêntica e da retroatividade inautên- tica, concluiu o tribunal a quo que, no caso, havia ocorrido uma retroatividade autêntica de «grau máximo» que pesou na sua ponderação quanto à inaceitabilidade da frustração das legítimas expectativas dos privados quanto à continuidade da ordem jurídica. Num juízo destinado a averiguar do cumprimento ou incumprimento do princípio da proteção da con- fiança, a importância dada à retroação dos efeitos de certa medida legislativa – e ao seu grau de intensidade – faz todo o sentido. Como se sabe, e como tem salientado a jurisprudência do Tribunal (vide, por exemplo, o Acórdão n.º 129/08), a construção dogmática do princípio, enquanto limite constitucional à livre sucessão de leis no tempo, fez-se em larga medida a partir de “casos” em que se julgavam leis autenticamente retroa- tivas ou leis quasi-retroativas. A distinção entre um e outro tipo de “retroatividade”, e a questão de saber se, e em que medida, deveria haver limites constitucionais a uma e a outra, foi assim, desde o início, coeva da determinação do conteúdo do princípio da proteção da confiança, determinação essa que em larga medida se ficou a dever ao labor jurisprudencial do Tribunal Constitucional Federal alemão. Numa questão como esta que agora nos ocupa, em que o juízo de inconstitucionalidade de uma lei se funda, precisamente, na verificação da violação do referido princípio, faz portanto todo o sentido, não ape- nas que se dê particular acolhimento às categorias dogmáticas da retroatividade autêntica e da retroatividade inautêntica, como também que se profira o juízo tendo em conta o “grau máximo” de retroatividade verifi- cado no caso. Não será difícil concluir que, visando especificamente a proteção da confiança defender as pes- soas de ilegítimas disrupções da ordem jurídica, será precisamente naqueles casos em que a lei pretenda valer para o passado que mais necessário se mostra conferir operatividade ao princípio [da proteção da confiança]. Importa, no entanto, analisar mais de perto esta estrita relação entre “retroatividade” (e os graus de que pode revestir-se) e o conteúdo do princípio da proteção da confiança, enquanto limite constitucional à livre sucessão de leis no tempo.
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