TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 89.º Volume \ 2014
604 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL direito fundamental (ou, como adiante se verá, de posições jurídicas de outro modo abrangidas pela tutela constitucional da confiança), os limites constitucionais à revisibilidade da lei, impostos pelo princípio da continuidade, reduzem-se a um mínimo que consiste em assegurar a unidade e a identidade da própria ordem jurídica. Do que se trata, portanto, é de uma exigência que tem por objetivo salvaguardar a per- manência da ordem jurídica em si mesma considerada, i. e. a sua fiabilidade enquanto sistema normativo ordenador da vida em sociedade de forma a assim preservar a sua força normativa, e não a permanência de uma determinada normação (vide Hartmut Maurer, Kontinuitätsgewähr und Vertrauensschutz, in: Isensee/ Kirchhof (Hrsg.) , HStR IV, 32006, § 79 Rn. 3). No que respeita ao conteúdo da produção normativa é ao poder legislativo a quem a Constituição comete a tarefa de conformá-lo – o que inclui a sua revisão para o futuro – estando vedado ao poder judicial substituir-se ao legislador no exercício daquilo que é específico da atividade legislativa do Estado. No caso dos autos, apenas relativamente à norma do artigo 1.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, se poderia pôr, autonomamente, o problema da sua conformidade face ao princípio constitucional da continui- dade. Na medida em que a referida norma vem revogar um ato legislativo anterior, com efeitos para o futuro, só ela é suscetível de pôr em causa a exigência de continuidade da atuação estadual. Já a apreciação da con- formidade constitucional da norma do artigo 2.º, que vem destruir retroactivamente os efeitos produzidos pelo diploma revogado, convoca especificamente o princípio da proteção da confiança. Porque aí o eventual desvalor constitucional se situa estritamente em um plano jurídico-subjetivo, pressupondo a desconformi- dade constitucional da normação que a mesma afete posições jurídicas subjetivas, não é autonomamente convocável o princípio da continuidade, enquanto parâmetro jurídico-objetivo. É que de duas uma: ou a revogação retroativa do Decreto-Lei n.º 188/2008, operada pela norma do artigo 2.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, afeta ilegitimamente posições jurídicas subjetivas do particular, caso em que será inconstitucio- nal com base em violação de um outro parâmetro (que não o do princípio da continuidade), ou a normação em questão não atinge essas posições jurídicas (ou as não atinge de modo ilegítimo), caso em que não existe qualquer desvalor constitucional no plano jurídico-subjetivo. À margem da afetação de posições jurídicas subjetivas, suscetível de violar o princípio da continuidade encontra-se apenas a norma do artigo 1.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, pois só relativamente a ela, na medida em que implica uma descontinuidade em relação ao passado, se poderá pôr o problema de uma vinculação do legislador para o futuro. Ora, a norma do artigo 1.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, limita-se a revogar o Decreto-Lei n.º 188/2008, um instrumento normativo ordenador de uma concessão de um serviço público. Dada a tendencial evolução das condições em que um serviço público pode ser prestado – evolução essa de que o próprio teor do Decreto-Lei n.º 188/2008 é um exemplo –, os instrumentos normativos ao dispor do Estado não podem deixar de ser permanentemente revisíveis, reconhecendo-se ao legislador uma amplíssima margem de liberdade de conformação. E não se vê de todo em todo como é que a alteração da política por- tuária, consubstanciada na revogação do Decreto-Lei n.º 188/2008, operada pela norma do artigo 1.º da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, é suscetível de pôr em causa a garantia de permanência da ordem jurídica. Impedir que, neste domínio, a ordem jurídica reaja a novos desenvolvimentos levaria à perda de correspon- dência do Direito à realidade e, em consequência disso, à perda da sua força normativa. É certo que, segundo a decisão recorrida, as razões que estiveram na base da aprovação da Lei n.º 14/2010, de 23 de julho, nada teriam que ver com a necessidade de adaptação da ordem jurídica face a novos desen- volvimentos ou a qualquer outra razão excecional, específica ou tão-só nova de interesse público, antes tendo a emissão desse diploma ficado a dever-se essencialmente a uma divergência política (ou político-partidária) relativamente à opção do Governo que se traduziu e concretizou na aprovação do Decreto-Lei n.º 188/2008. Simplesmente, quaisquer que possam ter sido essas razões, as mesmas são jurídico-constitucionalmente irre- levantes, não cabendo ao poder judicial, fora de situações de afetação de posições jurídicas subjetivas que se insiram no âmbito de proteção normativa de um direito fundamental ou de posições jurídicas de outro modo abrangidas pela tutela constitucional da confiança, inquiri-las.
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