TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 89.º Volume \ 2014

603 acórdão n.º 202/14 DECLARAÇÃO DE VOTO Vencida, pelas seguintes razões: 1. As normas cuja aplicação o tribunal a quo recusou, e que agora se julgam inconstitucionais, integram uma decisão da Assembleia da República que, sob a forma de ato legislativo, revogou retroactivamente um outro ato legislativo que fora emitido pelo Governo dois anos antes. Ao apreciar a questão de saber se a decisão tomada pela Assembleia da República sob a forma de lei se incluiria ainda no âmbito dos poderes que àquela Assembleia são pela Constituição atribuídos ou se, pelo contrário, o legislador parlamentar não teria “invadido” a esfera de atuação que, nos termos da CRP, apenas pertence ao Governo, a decisão recorrida concluiu no primeiro sentido. Tal conclusão teve na sua base uma clara distinção entre o instrumento legislativo imediatamente habi- litador do contrato de concessão e o contrato de concessão em si mesmo considerado, tendo-se entendido que a validade deste último estava dependente da existência e permanência na ordem jurídica do primeiro. Quanto a esse ponto da fundamentação da decisão do tribunal a quo, o que mais interessa evidenciar é que nela se admite que podem ocorrer circunstâncias que justifiquem que o legislador “administrativo” confira a uma sua norma, mesmo a uma norma versando sobre as condições de validade de um ato ou con- trato, eficácia ex tunc , ou retroativa, sem que isso signifique que tal ato perca a sua natureza de ato da função legislativa. Com efeito – e acolhendo, quanto a este ponto, a fundamentação da decisão recorrida –, se o ato da Assembleia da República é o ato indispensável para que o aditamento ao contrato de concessão possa vali- damente subsistir e se não confunde portanto com ele, então, ter-se-á que concluir que tal ato integra uma lei habilitante do agir administrativo, pelo que não pode questionar-se a competência da Assembleia da República para sobre a matéria legislar [artigo 161.º, alínea c) ]. Ao emitir tal ato, o órgão parlamentar não está a administrar, está ainda a legislar. Mais do que isso, o órgão parlamentar está a levar a cabo a sua tarefa, decorrente do princípio da legalidade da Administração, na sua dimensão de preferência ou antecedência de lei, consistente em fixar orientações vinculantes para a Administração Pública, habilitando-a a agir. Porque assim é, inexiste qualquer violação do princípio da separação dos poderes. 2. A competência para pré-ocupar normativamente determinada política pública a ser seguida pela Administração decorre, já o dissemos, do princípio da legalidade da Administração, na sua dimensão de pre- ferência ou antecedência de lei, que, tal como o princípio da separação dos poderes, é um elemento material do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2.º da CRP. Ora, a subtração, efetuada por ato legislativo, de uma habilitação legal anteriormente concedida para a Administração levar a cabo determinada política pública nada tem de extraordinário, fazendo parte do normal funcionamento de uma ordem jurídica democraticamente organizada, caracterizada pela autorre- visibilidade da lei, podendo essa alteração ser ou não determinada pela alternância da maioria parlamentar. É certo que o princípio do Estado de direito exige que a evolução da ordem jurídica se faça de modo contínuo, moderado e articulado, só assim logrando o Direito desempenhar a sua tarefa ordenadora da vida social e estadual. Em caso algum, porém, tal exigência de continuidade (Kontinuitätsgebot) configura uma ilimitada vinculação do legislador para o futuro. Ao legislador a ordem constitucional estabelece imperativos de regulação de uma sociedade livre e aberta ao conhecimento, o que requer uma permanente revisibilidade da produção normativa. A isso acresce que o próprio princípio democrático legitima a permanente alteração da normação produzida de modo a refletir, em cada ciclo político, as preferências dos indivíduos, expressas através dos seus representantes nos órgãos competentes para a emissão de legislação. Além disso, o princípio da continuidade (sobre esse princípio constitucional vide Anna Leisner, Konti- nuität als Verfassungsprinzip, Mohr Siebeck, Tübingen, 2002) encerra uma dimensão eminentemente objetiva. Fora das situações de afetação de posições jurídicas subjetivas que se insiram no domínio protegido de um

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