TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 89.º Volume \ 2014
577 acórdão n.º 202/14 No tocante ao legislador, porém, há-de esta exigência (decorrente da conceção do Estado de direito) com- paginar-se com outro princípio (este ligado ou mais ligado – diz-se – à conceção do Estado democrático), qual o da “revisibilidade” da lei. Decerto: não pode toda e qualquer expectativa da comunidade jurídica em geral, ou dos membros dela que vão ser diretamente afetados, constituir obstáculo à alteração da ordem jurídica exigida pelo interesse público, ou pela nova avaliação que dele faz o legislador (o legislador demo- crático). Há aí, pois, uma «ponderação» a fazer, mas há, de todo o modo, limites – sob pena da subversão da “estadualidade de direito”. Uma indicação desses limites encontra-se logo no princípio geral (e “comum às nações civilizadas”) da “não retroatividade” das leis (artigo 12.º do Código Civil) – princípio que, se não assume o carácter de uma vinculação constitucional, salvo em medida parcelar (artigos 18.º, n.º 3, e 29.º, n.º 1, e 103.º, n.º 3, da Constituição), não deixa de se traduzir justamente no primeiro dos instrumentos da «ponderação» a que acabou de aludir-se – e um instrumento a que não pode negar-se, senão um determinante significado her- menêutico, seguramente um relevante valor heurístico, mesmo no plano constitucional e fora das situações neste contempladas especificamente. Mas não será esse o único limite – pois bem podem ocorrer situações que, ficando embora aquém da “retroatividade”, ou seja (e de acordo com uma qualificação hoje muito comum) situações de simples “retrospetividade”, que se justifique acautelar (é dizer, impedir) em nome do princípio da confiança. c) Este sentido, este significado e este alcance do princípio da segurança jurídica e, em particular, do princípio da proteção da confiança legítima, encontram um inequívoco, continuado e consistente reconhecimento na jurisprudência constitucional portuguesa. São já incontáveis os arestos em que o tema foi versado; e se, na maioria deles, o Tribunal Constitucional concluiu pela não violação desses princípios pelo legislador, estão longe de ser raros aqueles em que a sua conclusão foi a contrária. Um dos acórdãos – em que justamente se conclui pela violação do princípio da confiança – e em que se faz uma elaborada análise e sistematização dos requisitos que devem reunir-se para que tal violação ocorra, foi o Acórdão n.º 287/90, cujas formulações foram depois retomadas em muitos outros. Aí se postulou que, para tal acontecer, importava, desde logo, que fossem postas em causa “expectativas legitimamente fundadas” dos cidadãos, mas, depois, que a afetação de expectativas “constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar” e, ainda, que não haja sido ditada “pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente pro- tegidos que devam considerar-se prevalecentes”, havendo, quanto a este último ponto, que “recorrer-se ao princípio da proporcionalidade”. Trata-se de uma formulação consideravelmente apertada – e, por isso, bem se compreende que, revisitando- -a, numa espécie muito posterior, o Tribunal haja salientado que tais “apertados critérios foram estabele- cidos para situações em que os cidadãos detinham apenas meras expectativas legítimas, sendo obviamente distinta a situação quando estejamos perante situações de direitos já completamente formados e, ainda mais, de direitos já exercitados”, como ocorria no caso (realce no original): Acórdão n.º 158/08, n.º 2.2. Entretanto, e retomando ainda os critérios do Acórdão n.º 287/90, veio o Tribunal, mais recentemente, no Acórdão n.º 128/09, como que explicitá-los, clarificando que eles se reconduzem a quatro diferentes testes, de tal modo que, “para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da ‘confiança’ é necessário”: em primeiro lugar “que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados ‘expectativas de continuidade’”; depois, “devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões”; em terceiro lugar, “devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do ‘comportamento’ estadual”; e, por último, “é necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa” (n.º 8.2 do Acórdão; realçou-se agora). Passará a situação invocada pela Demandada estes testes? Ou, dito ao invés: claudicará a Lei n.º 14/2010, face a estes testes?
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