TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 89.º Volume \ 2014

559 acórdão n.º 201/14 constitucionais em que se funda a afirmação de violação do princípio da culpa, que é o nuclear na fundamen- tação da referida jurisprudência do Tribunal a propósito da ilegitimidade constitucional de penas criminais fixas. Na verdade, não está em causa minimamente o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º1) porque a multa contravencional, diversamente da multa criminal, não tem prisão sucedânea. E só de modo muito remoto – e nunca por causa da sua invariabilidade – uma sanção estritamente pecuniária, num ilícito sem qualquer efeito jurídico estigmatizante, pode contender com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), que é de onde o Tribunal tem deduzido o princípio da culpa na “Constituição criminal”. Como diz Figueiredo Dias, O Movimento da Discriminalização (…) , p. 29, a propósito da culpa na imputação das contraordenações, também perante uma categoria de infrações, punidas “independentemente de toda a intenção maléfica”, não se trata de uma culpa, como a jurídico-penal baseada numa censura ética dirigida à pessoa do agente, à sua abstrata intenção, mas apenas de uma imputação do ato à responsabilidade social do seu autor. Assim enten- dido, o princípio da culpa pode ser pressuposto da imposição da sanção (fundamento), mas não é um fator constitucionalmente necessário da sua medida concreta (limite individual), não significando a cominação de uma multa contravencional fixa, por si só, violação dos artigos 1.º e 27.º, n.º 1, da Constituição”. Valioso é ainda o que o Tribunal disse no Acórdão n.º 336/08 (disponível em www.tribunalconstitucio- nal.pt) : «A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da pro- porcionalidade e da sociabilidade. É que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se contém já a valoração da ilicitude. No caso das contraordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal.” (Figueiredo Dias, na ob. cit. , p. 146). Da autonomia do ilícito de mera ordenação social resulta uma autonomia dogmática do direito das contraorde- nações, que se manifesta em matérias como a culpa, a sanção e o próprio concurso de infrações (vide, neste sentido, Figueiredo Dias na ob. cit. , p. 150). Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima” (Figueiredo Dias, em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar , I, p. 331, da edição de 1983, do Centro de Estudos Judiciários). E por isso, se o direito das contraordenações não deixa de ser um direito sancionatório de caráter puni- tivo, a verdade é que a sua sanção típica “se diferencia, na sua essência e nas suas finalidades, da pena crimi- nal, mesmo da pena de multa criminal (…) A coima não se liga, ao contrário da pena criminal, à persona- lidade do agente e à sua atitude interna (consequência da diferente natureza e da diferente função da culpa na responsabilidade pela contraordenação), antes serve como mera admoestação, como especial advertên- cia ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas; e o que esta circunstância representa em termos de medida concreta da sanção é da mais evidente importância. Deste ponto de vista se pode afirmar que as finalidades da coima são em larga medida estranhas a sentidos positi- vos de prevenção especial ou de (re)socialização.” (Figueiredo Dias, em Temas Básicos da Doutrina Penal , pp. 150-151, da edição de 2001, da Coimbra Editora). Daí que, em sede de direito de mera ordenação social, nunca há sanções privativas da liberdade. E mesmo o efeito da falta de pagamento da coima só pode ser a execução da soma devida, nos termos do artigo 89.º do Decreto-Lei n.º 433/82, e nunca a da sua conversão em prisão subsidiária, como normalmente sucede com a pena criminal de multa.

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