TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 89.º Volume \ 2014

436 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Mas o Código de Processo Penal não teve em consideração apenas uma perspetiva formal do conceito de coarguido. Antes teve presente que aquela proteção não podia ficar na dependência de uma configuração processual mutável e permeável à ação da administração da justiça, pelo que estabeleceu no n.º 2, do mesmo artigo, que, no caso de separação de processos, «os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo, mesmo que já condenados por sentença transitada em julgado, só podem depor como testemunhas se nisso expressamente consentirem». Ou seja, nos casos em que alguém assuma a dupla qualidade, de testemunha num processo e de arguido “de um mesmo crime ou de crime conexo” em “processo separado”, só poderá depor no primeiro processo como testemunha, com o seu assentimento expresso. Nestes casos, o depoente, para além de beneficiar da proteção concedida, em geral, às testemunhas, de se recusarem a responder a perguntas de cuja resposta possa resultar a sua responsabilização penal (artigo 132.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), goza ainda da proteção concedida aos arguidos de se recusarem a prestar quaisquer declara- ções, mantendo-se em silêncio. Nestas situações em que processos, relativos à prática do mesmo crime ou de crimes conexos, são jul- gados separadamente, o legislador, liberto da incompatibilidade de alguém ter a dupla qualidade de arguido e testemunha no mesmo processo, adotou uma específica medida de conciliação do interesse no máximo aproveitamento possível de todo o material probatório, com vista à descoberta da verdade, com a manuten- ção da garantia da liberdade de declaração do “arguido” chamado a testemunhar no processo contra outro arguido. Reportando-se a esta solução, Medina de Seiça (em O conhecimento probatório do arguido , p. 122, da edição de 1999, da Coimbra Editora), refere que «[o] modelo do testemunho consentido plasmado no artigo 133.º, n.º 2, pretende satisfazer a exigência de trazer o conhecimento probatório do coarguido a um processo em que não se encontra a responder sem eliminar a primacial garantia do impedimento: a não sujeição dos arguidos do mesmo crime (ou crime conexo) ao constrangimento característico da prova testemunhal». Em vez do recurso a um impedimento absoluto, foi suficiente a consagração de um impedimento rela- tivo. Contudo, não deixou de entender-se que, para garantia da observância do direito à não autoincrimina- ção, não era suficiente agir-se repressivamente proibindo a valoração da prova produzida pelo “coarguido”, enquanto testemunha no “processo separado”, sendo antes necessário uma medida preventiva que garantisse ao coarguido a liberdade de, desde logo, este prestar ou não depoimento no processo em que, sendo aí teste- munha, eram objeto de prova factos que também o incriminavam. Na verdade, o simples facto do coarguido ser obrigado a tomar posição sobre factos que o incriminam, constitui um meio compulsório deste fornecer dados que podem vir a ser utilizados contra a sua defesa no processo onde irá ser julgado pela prática desses factos. Daí que a proibição deva incidir desde logo sobre a obrigação do arguido prestar depoimento. Conforme tem sido afirmado, as exigências impostas pelo artigo 133.º, n.º 2, do Código de Pro- cesso Penal, no que respeita à admissibilidade do depoimento dos arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo em caso de separação de processos, têm como finalidade a proteção dos direitos e da posição processual do arguido chamado a prestar tal depoimento, tendo em vista garantir o seu direito de se não autoincriminar (vide, neste sentido, os Acórdãos deste Tribunal n. os  304/04 e 181/05, acessíveis, em www.tribunalconstitucional.pt , Paulo Dá Mesquita, em A prova do crime e o que se disse antes do julgamento , p. 487, edição de 2011, da Coimbra Editora, e Medina de Seiça, ob. cit. , pp. 33-34; contudo, no sentido de que esta proibição não visa apenas proteger o arguido chamado a depor como testemunha do que, nessa qualidade, possa dizer em prejuízo da sua posição, mas também proteger o arguido do processo conexo, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, em Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem , 2.ª edição, Universidade Católica Editora, pp. 355-356). Daí que este impedimento apenas valha, em regra, enquanto o arguido mantiver essa qualidade no processo. Cessando essa qualidade, por extinção do procedimento criminal ou por absolvição, deixa de estar em jogo a aplicação de uma pena ao depoente (vide, neste sentido, Medina de Seiça, ob. cit. , p. 92, e Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit. , p. 372), pelo que nada impede que o ex-arguido deponha como testemu-

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