TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 89.º Volume \ 2014

36 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL menor em ver reconhecida uma relação jurídica com uma família em concreto, mas apenas uma simples pretensão de um casal a adotar, ex novo , uma criança que não terá, à partida, qualquer relação com o casal, ainda que tenha interesse em ser adotada, em geral. Ora, atendendo a que o instituto da adoção visa satisfazer em primeiro plano os interesses da criança, e não o dos adotantes, não se pode deixar de referir que os cidadãos eleitores podem desconsiderar que as valorações a ter em conta são distintas numa e noutra questão. Se o intuito da adoção é «dar uma família a uma criança e não uma criança a uma família», como ilustrativamente sublinha o TEDH (caso Fretté vs. França, acórdão de 26 de fevereiro de 2002), os cidadãos eleitores, para além da questão da igualdade com os casais heterossexuais, devem ser confrontados necessariamente com o interesse da criança em viver numa família homoparental. 15.5. Ora são estas diferentes valorações, inerentes a uma e outra questão, que podem gerar ambigui- dade. Pelo facto de estarem feitas em conjunto, pode o eleitorado julgar que se trata, nas duas, apenas e tão só de reconhecer as pretensões dos casais de pessoas do mesmo sexo em adotar, esquecendo que, no primeiro caso, para além dessa pretensão estão ainda outros interesses, como o interesse da criança e uma relação familiar pré-existente. De facto, a resposta dada à segunda pergunta pode “contaminar” a resposta dada à primeira, ou vice-versa, de tal forma que, se feitas separadamente, as questões poderiam obter respostas diferentes, porque o eleitorado teria presente que as valorações inerentes a ambas seriam também diferentes. A conjugação destes quesitos num só referendo, pela diversidade de valorações que devem concorrer para uma resposta a dar a um e a outro é de molde a pôr em causa o respeito pela necessidade de precisão das questões. A sua conjugação em concreto pode levar a uma errónea visualização daquilo que realmente está em causa numa e noutra, por se ter feito uma deficiente tentativa de simplificação para os eleitores da tarefa decisória (M. Benedita Urbano, O Referendo… , p. 207). E assim é porque a conjugação das duas perguntas pode levar à possibilidade de que a resposta a uma “arraste” a resposta a outra, podendo fazer com que o eleitor não proceda a ponderações autónomas no que respeita às diferentes valorações em jogo no que toca a cada uma delas, e, assim, induzir a respostas viciadas à partida. Assim acontecerá, por exemplo, com o cidadão eleitor que considerar existir fundamento material bas- tante para diferenciar os casais do mesmo sexo dos casais de sexo diferente, no que se refere à adoção, pode ser induzido a responder afirmativamente à segunda pergunta pelo facto de ter respondido de igual modo à pri- meira, em que concordou ser do interesse da criança ter dupla paternidade ou maternidade, pelo facto de ser filho biológico ou adotivo de um dos membros do casal do mesmo sexo com quem vive. De igual modo, um cidadão eleitor que considera que os casais do mesmo sexo não devem ser discriminados relativamente aos casais de sexo diferente, concordando com a segunda pergunta, é imediatamente conduzido a responder afir- mativamente à primeira, independentemente de ponderação de quaisquer interesses da criança adoptanda. 15.6. Além disso, a junção destas duas perguntas deixa o legislador numa situação dilemática. De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, em caso de multiplicidade de perguntas, as mesmas têm de permitir «um conjunto unívoco de respostas ou uma resposta global unívoca», que deixe ao legislador indicações precisas sobre como atuar (Acórdãos n.º 549/99 e n.º 398/12). Mas isso não ocorre com as questões propostas a referendo. Veja-se a hipótese do resultado do referendo ser no sentido da proibição da adoção singular do filho natural ou adotado do cônjuge do mesmo sexo (um «não» à primeira pergunta), conjugada com a obrigatoriedade de permissão de adoção por casais de pessoas do mesmo sexo (um «sim» à segunda pergunta). Nesse caso, os eleitores deixam o legislador numa posição em que é obrigado a permitir o estabelecimento de relações de parentalidade, através da adoção, em relação a todos os casais do mesmo sexo sem poder permitir o estabelecimento de relações de parentalidade em relação a apenas alguns casais do mesmo sexo. Ora essa situação, tendo em conta a necessária unidade do ordena- mento normativo, decorrente do Estado de direito, é inadmissível, já que o resultado jurídico decorrente

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