TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 89.º Volume \ 2014

34 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL É de facto evidente que, apesar do enunciado dos quesitos exprimir sobretudo os interesses dos casais do mesmo sexo, pondo em discussão se há ou não razões materialmente fundadas para os discriminar relati- vamente aos casais de pessoas de sexo diferente, a consulta referendária também debaterá e votará o superior interesse dos adotandos, pelo menos na perspetiva colocada pelos quesitos, ou seja, se a integração num casal de pessoas do mesmo sexo justifica o reconhecimento de duas paternidades ou de duas maternidades. Daí que, a verificação dos requisitos da objetividade, clareza e precisão tenha que ser aferida com base numa racionalidade axiológica, em que se averigue se as valorações contidas na proposta referendária podem ser bem compreendidas pelos cidadãos eleitores, em termos de os deixarem conscientes dos efeitos políticos e normativos da decisão que vão tomar. Ora, a formulação simultânea das questões em causa pode levar à falta de compreensão, por parte dos eleitores, dos valores que se manifestam em cada um dos quesitos. De facto, como já foi referido, as questões referem-se a duas possibilidades – coadoção e adoção conjunta por casais do mesmo sexo – que, embora enquadradas na mesma matéria – requisitos para adotar – são perguntas aos quais estão subjacentes ponderações distintas, como se vê dos Projetos de Lei que foram apresentados, em que a adoção conjunta foi rejeitada e a coadoção foi aprovada na generalidade. 15.3. Na questão formulada na primeira pergunta, está em causa a adoção do filho de cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo. Nesta situação tratar-se-á de estabelecer vínculos jurídicos entre uma criança e uma pessoa com quem a criança possui já uma relação de parentalidade. Trata-se, pois, de estabelecer um laço jurídico entre duas pessoas que têm vínculos jurídicos pré-existentes com uma terceira, i. e. , de reconhecer efeitos jurídicos ao lado remanescente desta relação triangular – ao vínculo entre a criança e o outro membro do casal. Para além do enquadramento familiar jurídico, várias podem ser as situações em que uma criança se pode encontrar já de facto integrada no seio de uma família composta por um casal de pessoas do mesmo sexo: a viuvez de um dos cônjuges e posterior casamento ou união de facto com pessoa do mesmo sexo; o recurso a técnicas de procriação medicamente assistida por um dos membros do casal, independentemente da forma como a mesma foi alcançada; ou a adoção singular prevista no n.º 2 do artigo 1797.º do Código Civil. Nestes casos, independentemente das demais questões que se possam colocar, como o direito à iden- tidade pessoal e o direito ao desenvolvimento da personalidade, a adoção visa o reconhecimento de efeitos jurídicos a uma relação que se foi estabelecendo de facto e que une diretamente a criança e o aspirante a adotante. Nas situações de famílias que já existem, poderá discutir-se na consulta referendária se a adoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo do filho do seu cônjuge ou unido de facto compromete ou não o superior interesse da criança. Ora, a inserção do adotando numa família já existente de casais do mesmo sexo tem servido de fun- damento ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) para legitimar a adoção por esses casais. Tendo por referência o artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), o Tribunal tem utilizado «o critério da efetividade dos laços interpessoais» para aferir a existência de “vida familiar” em função de vários fatores, como a existência de coabitação ou de dependência financeira [vide Susana Almeida, O Respeito pela Vida (Privada e) Familiar na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: a Tutela das Novas Formas de Família, Coimbra Editora, 2008, pp. 68 e segs.]. Em várias decisões, o Tribunal pronunciou-se sobre a integração no conceito de “vida familiar” de crianças que vivem em contexto de famílias “recombinadas”. Por exemplo, pronunciou-se a favor da existên- cia de vida familiar entre a criança e o homem que, não obstante não ser o seu pai natural, coabitava com a mãe do menor (acórdão K. e T. vs. Finlândia, de 12 de julho de 2001); integrou na noção de vida familiar as relações entre adotante e adotado (acórdão Pini, Bertani e outros vs. Roménia, de 22 de junho de 2004); deu relevância à vida familiar efetivamente existente entre o pai adotante e a criança (de quem o primeiro cui- dava, como pai, desde tenra idade) mesmo antes de se formalizarem os laços de adoção, fazendo prevalecer tal relação sobre os laços de filiação existentes entre a criança e o pai natural (acórdão  Söderbäck vs. Suécia,

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