TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 89.º Volume \ 2014

286 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL É nesta lógica que, em casos como este, a regra de imputação colocada pelo conceito extensivo de autor conduzirá à responsabilização da entidade dirigente titular do dever de garante sempre que se tenha verifi- cado o resultado (a inobservância do dever) que ela se encontrava legalmente incumbida de evitar. Impendendo sobre a entidade patronal o dever legal de garantir o cumprimento das regras respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, ela é contraordenacionalmente responsabilizável, nos termos previstos no diploma em análise, não apenas nas hipóteses em que, por ação sua, tiver originado diretamente o resultado antijurí- dico, mas ainda no contexto de uma contribuição omissiva, causal ou cocausalmente promotora do resultado típico, presumido, quando a infração é cometida pelo condutor que se encontra ao seu serviço. Competindo-lhe enquanto entidade patronal organizar o transporte rodoviário de modo a que o con- dutor ao seu serviço cumpra as normas que regulamentam essa atividade, designadamente as regras laborais, não se revela arbitrária, nem injustificada, a presunção de que a inobservância dessas regras por parte do condutor tem a sua causa na deficiente organização daquela atividade, estando nós perante o funcionamento de uma mera presunção relativa a factos. Se uma construção deste tipo pode ser problemática no domínio do direito penal, já em sede de direito de mera ordenação social em que apenas está em jogo a aplicação de coimas, não suscita qualquer reserva, tanto mais que, neste caso, se permite que a entidade patronal afaste a sua responsabilidade contraordenacio- nal, demonstrando que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o seu condutor pudesse ter cumprido a norma que inobservou, ilidindo assim aquela presunção. Como se escreveu no Acórdão n.º 336/08, desta 2.ª Secção do Tribunal Constitucional: «(…) existem, desde sempre, razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contraorde- nações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (vide Figueiredo Dias, em Temas Básicos da Doutrina Penal , pp. 144-152, da edição de 2001, da Coimbra Editora). A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da pro- porcionalidade e da sociabilidade. É que “no caso dos crimes estamos perante condutas cujos elementos constitutivos, no seu conjunto, suportam imediatamente uma valoração – social, moral, cultural – na qual se contém já a valoração da ilicitude. No caso das contraordenações, pelo contrário, não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma valoração mais ampla daquele tipo; pelo que, se, não obstante ser assim, se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas, tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal.” (Figueiredo Dias, na ob. cit. , p. 146). Não se trata aqui “de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima” (Figueiredo Dias em “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar , I, p. 331, da edição de 1983, do Centro de Estudos Judiciários). (…) Estas diferenças não são nada despiciendas e deverão obstar a qualquer tentação de exportação imponderada dos princípios constitucionais penais em matéria de penas criminais para a área do ilícito de mera ordenação social.» Daí que a solução contida na norma recusada não possa ser considerada violadora do princípio penal da culpa, nem de qualquer outro parâmetro constitucional, devendo ser julgado procedente o recurso inter- posto pelo Ministério Público.

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