TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 89.º Volume \ 2014

179 acórdão n.º 315/14 Ora, em princípio, a impossibilidade de transferência de bens do domínio público marítimo do Estado arrasta consigo a impossibilidade de transferência dos poderes dominiais que sobre eles recaiam. No Acórdão n.º 131/03 refere-se que «é corolário necessário da não transferibilidade dos bens do domínio público marí- timo do Estado a impossibilidade de transferência dos poderes que sejam inerentes à dominialidade, isto é, os necessários à sua conservação, delimitação e defesa, de modo a que tais bens se mantenham aptos a satisfazer os fins de utilidade pública que justificaram a sua afetação». Isso não significa, porém, que esteja excluída a possibilidade de transferência de todo e qualquer poder característico da dominialidade. O reenvio que o artigo 84.º da CRP faz para lei, quanto à definição dos bens integrantes do domínio público, bem como do seu regime, condições de utilização e limites [alínea f ) do n.º 1 e n.º 2], consente a separação entre titularidade e o exercício dos poderes característicos do estatuto da domi- nialidade, o que significa, por outras palavras, que a titularidade do domínio não engloba necessariamente todos os poderes de gestão do bem dominial (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., pp. 85 e segs.). E daí que, no conjunto dos poderes que podem incidir sobre os bens dominiais, se tenha que distinguir aqueles que apenas podem ser exercidos pelo titular dominial, sob pena de não se assegurar o fim público a que direta e permanentemente estão destinados, daqueles que podem ser exercidos por entidades diferentes do respetivo titular, sem se comprometer aquela finalidade. De facto, não pode deixar de se reconhecer que há poderes ou faculdades inerentes à dominialidade que não podem ser subtraídos ao seu titular sem se ofender o fim e a função pública que justifica a dominialização do bem. No domínio público marítimo são intransferíveis os poderes que respeitem à integridade e soberania do Estado ou os poderes que sejam incompatíveis com a integração dos bens em causa nesse domínio, desig- nadamente os poderes de manutenção, delimitação e defesa do domínio. Já quanto à gestão do bem domi- nial, incluindo o seu aproveitamento ou utilização, não há impedimento a que ela seja dissociada do titular do domínio e confiada a outras pessoas coletivas públicas ou a particulares, designadamente concessionários (cfr. Ana Raquel Moniz, ob. cit., pp. 400 e 401). Assim, enquanto a transferência daqueles “poderes primários” para as regiões autónomas «ofenderia a dominialidade estatal necessária do bem em causa» [cfr. Rui Medeiros, Tiago de Freitas e Rui Lanceiro, Enquadramento (…) cit., p. 190], o mesmo não ocorre com a transferência de “poderes secundários” que não ponham em causa a integridade territorial e a autoridade do Estado, ou que sejam compatíveis com a inte- gração dos bens no domínio público. Não está, pois, excluída a «possibilidade de transferência de um poder ou faculdade bem especificados, desde que não seja posto em causa o núcleo essencial da dominialidade e, naturalmente, desde que haja conexão entre tais poderes e o interesse específico das regiões» (cfr. Pedro Lomba, “Regiões autónomas e transferência de competências sobre o domínio natural. Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 131/03”, in Jurisprudência Constitucional, 2004, p. 65). Neste sentido, e denotando uma mudança no sentido da jurisprudência anterior, no Acórdão n.º 402/08, diz-se o seguinte: «O que acaba de dizer-se não significa – cumpre sublinhá-lo — que, mantida incólume a titularidade do Estado, não estejam constitucionalmente legitimadas formas dúcteis de exploração e rendibilização dos bens domi- niais, em cuja definição tenham um papel relevante os poderes regionais. Uma tal opção encontra apoio claro nos fundamentos e objetivos da autonomia traçados no artigo 225.º, em particular nos objetivos de “desenvolvimento económico-social” e no de “promoção e defesa dos interesses regionais” (n.º 2 do citado artigo). Nem sequer, rejeitada a tese de que a titularidade do domínio é necessariamente acompanhada pela titulari- dade de (todas as) competências gestionárias, estará excluída a possibilidade de uma transferência para outros entes de certos poderes de gestão ínsitos na titularidade do Estado, designadamente de poderes que não digam respeito à defesa nacional e à autoridade do Estado. A não regionabilidade da titularidade do domínio público marítimo integrante ou circundante da área territorial das regiões autónomas não arrasta consigo, como consequência for- çosa, a insusceptibilidade de transferência de certos poderes contidos no domínio».

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