TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 87.º Volume \ 2013
466 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL na sua vertente de “direito a um processo equitativo” (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), afigura-se despropositada, na medida em que se pretende invocar essa norma constitucional relativamente a uma atuação tipicamente administrativa, prosseguida por uma “pessoa coletiva de utilidade pública”, como é o caso da SCML. Acresce, neste caso concreto, que a norma extraída do artigo 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 282/2003, de 3 de novembro, em conjugação com a alínea j) do n.º 1 do artigo 3.º do Regulamento do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovado, como Anexo II, pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de agosto, se refere a um poder administrativo, de tipo sancionatório, que se circunscreve a uma “fase administrativa” do procedimento contraordenacional. Ora, em boa verdade, o “direito a um processo equitativo” apenas seria convocável caso estivesse em causa o exercício de direitos subjetivos na “fase jurisdicional” desse mesmo procedimento contraordenacional. Aliás, como este Tribunal já teve oportunidade de demonstrar, através do Acórdão n.º 278/11: «(…) 5. Antes de mais, importa reter que a Lei Fundamental, em sede de garantias processuais dos cidadãos e das pessoas coletivas, reconhece, expressamente, que, além do Direito Penal, outros ramos do Direito Público assu- mem uma natureza punitiva ou sancionatória. Assim, além da referência específica ao Direito Contraordenacional, a norma constitucional assume uma vocação ampliadora, abarcando todos os demais ramos do Direito Admi- nistrativo Sancionatório, devendo a lei assegurar o respeito pelos direitos de audiência e de defesa (artigo 32.º, n.º 10, da CRP). Se atentamos nos mecanismos próprios do Direito Contraordenacional, verificamos que o legislador operou a uma cisão entre uma fase de aferição administrativa do cometimento do ilícito – “fase administrativa” (artigos 33.º a 58.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro) – e uma fase de controlo jurisdicionalizado da decisão sancionatória – “fase jurisdicional” (artigos 59.º a 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro). Visando a sanção contraordenacional fins de prevenção geral e especial da prática de atos contrários ao bloco de legalidade – que, no entanto, não se revestem de um desvalor jurídico suficientemente forte que justifique a respetiva crimi- nalização –, compreende-se, portanto, que o legislador tenha cometido à própria administração pública os poderes para fiscalizar o cumprimento daquele bloco de legalidade e, em caso de infração, o poder para os sancionar. Essa função corresponde, aliás, à própria essência da função administrativa, ou seja, à execução dos comandos normati- vos adotados pelos órgãos competentes, em estrita observância e prossecução do interesse público. E nem se diga que tal função punitiva, exercida pela administração pública, coloca em causa o princípio da separação de poderes, por invadir o âmago da função jurisdicional. Com efeito, por força do n.º 2 do artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa, cabe aos tribunais “assegurar a defesa dos direitos e interesses legal- mente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”, mas tal comando constitucional não se opõe ao exercício por várias entidades administrativas de poderes sancionatórios, que visam, precisamente, reprimir a violação da legalidade democrática, e que, aliás, alguma doutrina qualifica como poderes de tipo para-jurisdicional (adotando esta terminologia, ver Miguel Prata Roque,“Os poderes sancionatórios da ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social”, in Direito San- cionatório das Autoridades Reguladoras (Separata), Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 389-396; Ramón Parada, Derecho Administrativo – Parte General, Vol. I, 16.ª edição, Madrid, Marcial Pons, 2007, pp. 407 e 408; Paula Costa e Silva, “As autoridades administrativas independentes”, in O Direito , Ano 138.º, 2006, Tomo III, pp. 558 e 559; Pedro Gonçalves, “Direito Administrativo da Regulação“, in Estudos em Homenagem ao Professor Marcello Caetano , FDUL, 2006, p. 546; Vital Moreira / Fernanda Maçãs, Autoridades Reguladoras Independentes – Estudo e Projeto de Lei Quadro , Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 40. Este Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar no sentido de que o exercício de poderes san- cionatórios pela administração pública não contende, em regra, com o princípio da separação de poderes, na medida em que aquele possa ser alvo de controlo jurisdicionalizado, ainda que apenas em momento posterior à aplicação da sanção administrativa. Assim, veja-se o Acórdão n.º 161/90 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ) :
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