TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 87.º Volume \ 2013

465 acórdão n.º 404/13 Sem prejuízo da abertura interpretativa patente na Lei Fundamental portuguesa – maxime , por força da cláusula aberta de direitos fundamentais (cfr. artigo 16.º, n.º 1, da CRP), certo é que, neste caso, a interpretação a extrair da norma consagradora do “direito a um processo equitativo” (cfr. artigo 20.º, n.º 4, da CRP) não se encontra diretamente vinculada ao juízo hermenêutico que se extraia da Carta, mas antes decorre de uma interpretação autónoma, fundada no bloco de normatividade constitucional interno, ainda que se não possa descurar a função irradiadora das demais fontes externas sobre o conteúdo do direito fundamental em causa. 5. Importa, pois, começar por aferir se a fixação de competência sancionatória, de tipo contraordena- cional, a um órgão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa [SCML], relativamente a ilícitos cometidos no âmbito do regime jurídico dos jogos de azar, pode ser qualificada como inconstitucional, por violação do “direito a um processo equitativo” (cfr. artigo 20.º, n.º 4, da CRP). Evidentemente, a esfera de proteção normativa daquela norma constitucional engloba a faculdade de acesso a órgãos jurisdicionais, em plena igualdade material das partes que a eles recorrem. De onde se torna forçoso qualificar quer a natureza jurídica da pessoa coletiva cujo órgão foi encarregue daquele poder sancionador, quer a própria fase da tramitação em que aquele órgão interveio, para depois verificar se a mesma atuação se encontra abrangida pela esfera de proteção normativa do “direito a um processo equitativo”. A SCML é uma pessoa coletiva de Direito Privado, a quem foi conferido o estatuto de utilidade pública administrativa pelo n.º 1 do artigo 1.º dos respetivos Estatutos, seja, originariamente, por força da redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de agosto, seja, de acordo com o regime jurídico hoje em vigor, isto é, a que resulta do Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro. Trata-se, portanto, de uma “instituição particular de interesse público” – assim, ver Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume I, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 715-718. Aliás, ainda que sem se referir expressamente à SCML, o mesmo Autor (cfr. Freitas do Amaral, cit., pp. 719-720) demonstra que o próprio legislador optou por destacar, de entre essas mesmas “instituições particulares de interesse público”, as “instituições particulares de solidariedade social” – primeiro, através do Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de dezembro, e, mais tarde, pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro –, assumindo que estas prosseguem finalidades de “interesse público”, em matéria de prestação de serviços de assistência social. Ora, independentemente de saber se as Misericórdias podem continuar a ser qualificadas como “pessoas coletivas de utilidade administrativa”, em sentido próprio – e, recorde-se que, especificamente quanto à SCML, é o próprio legislador que mantém essa qualificação legal (cfr. artigo 1.º, n.º 1, dos Estatutos, nas redações conferidas pelo Decreto-Lei n.º 322/91 e pelo Decreto-Lei n.º 235/2008) –, certo é que se trata de de uma “pessoa coletiva de utilidade pública” (assim, ver Freitas do Amaral, cit., pp. 723-724 e 737). Significa isto que, apesar de se tratar de uma pessoa coletiva privada, a SCML desempenha atividades pró- prias da função administrativa, às quais o legislador reconhece interesse público relevante. Entre tais atividades incluem-se, entre muitas outras (em especial, as de assistência social e de prestação de cuidados de saúde), a ati- vidade de gestão dos jogos sociais de azar e de fortuna, que lhe foi cometida pelo Estado português. Com efeito, por força do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 84/85, de 28 de março, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 317/2002, de 27 de dezembro, e posteriormente alterado pelo Decreto-Lei n.º 37/2003, de 6 de março, o legislador reservou para o Estado português o direito de promoção de concursos de apostas mútuas, tendo instituído a SCML como concessionária da exploração desse mesmo sistema de apostas mútuas. Assim sendo, a SCML integra-se num conceito funcional e amplo de administração pública, que abarca, inclusivamente, as pessoas coletivas privadas encarregues do exercício da função administrativa. Por sua vez, o Departamento de Jogos da SCML corresponde a uma divisão orgânica daquela pessoa coletiva privada que, não sendo qualificada como um dos seus órgãos (cfr. artigo 12.º dos Estatutos da SCML), ainda assim se assume como centro de imputação de poderes, em especial, daqueles que dizem respeito à exploração dos concursos de apostas mútuas que foram concessionados àquela pessoa coletiva privada (cfr. artigo 24.º, n.º 1, dos Estatutos da SCML, e artigo 1.º, n.º 1, do Regulamento do Departamento de Jogos, aprovados como Anexo II ao Decreto-Lei n.º 322/91). Por essa razão, a invocação do “direito de acesso aos tribunais”,

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