TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 87.º Volume \ 2013
38 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Mesmo que existisse tal norma habilitante, a verdade é que existem limites às matérias que podem ser objeto de delegação por parte dos órgãos de soberania, como o Tribunal Constitucional, de resto, já sublinhou a respeito da relação entre a República e as Regiões Autónomas (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 192/88). A lei não pode «“delegar” a favor das Regiões Autónomas competências próprias de soberania, sob pena de violação do artigo [110.º] da Constituição» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 458/93). Por seu lado, a autonomia municipal não pode afetar a integridade da soberania do Estado. De facto, os poderes locais também são, por natureza, limitados, pois não podem ser exercidos para além do âmbito de interesses (necessariamente locais) que os justificam, não podendo invadir espaços de deliberação ou atua- ção que devem permanecer reservados à esfera da comunidade nacional (cfr. M. Lúcia Amaral, A Forma da República, Coimbra Editora, 2012, p. 385). Os órgãos autárquicos não podem, pois, em caso algum, assumir as atribuições ou os poderes característicos das entidades soberanas (quer na ordem interna, quer na ordem internacional). O Estado é unitário. Existe apenas um conjunto de órgãos de soberania para todo o território nacional. 42. Assim sendo, uma lei que permita a delegação por parte do Governo de poderes administrativos que lhe são constitucionalmente conferidos será inconstitucional por violação do artigo 111.º, n.º 2, da Lei Fundamental. A análise do NRJAL não permite, porém, concluir pelo desrespeito deste limite. É certo que no diploma não se enumeram ou concretizam as matérias que podem ser objeto de delega- ção e as que ficam excluídas dessa possibilidade. De facto, o seu artigo 107.º estabelece que a “delegação de competências” do Estado incide “em todos os domínios dos interesses próprios das populações das autar- quias locais e das entidades intermunicipais, em especial no âmbito das funções económicas e sociais”. No entanto, o mesmo preceito ressalva a necessidade de respeito pela “intangibilidade das atribuições estaduais” – dever que também resulta do artigo 102.º Apesar da falta de densificação de quais serão estas atribuições estatais intangíveis, esta formulação deve ser interpretada de modo a nelas se incluírem as atribui- ções do Governo constitucionalmente estabelecidas e indelegáveis por força do artigo 111.º, n.º 2, da CRP. Desta forma, a garantia assinalada da «intangibilidade das atribuições estaduais» permite concluir que o Governo não se encontra habilitado pelas normas em causa a delegar as suas atribuições constitucionalmente estabelecidas. 43. Importa, porém, levar mais longe a análise da conformidade constitucional do regime de «delegação de competências» do Estado nas autarquias locais previsto no NRJAL. Na verdade, e como já acima se deixou salientado, para além da alteração da divisão constitucionalmente estabelecida de atribuições e tarefas através de lei ordinária, o artigo 111.º, n.º 2, da CRP proíbe também a delegação de poderes (originariamente esta- belecidos na lei) que não seja habilitada por lei. Torna-se, portanto, indispensável apreciar se o regime de delegação de competências do Estado nos municípios previsto no NRJAL pode ser configurado como norma habilitante que cumpre os requisitos impostos pela CRP. 44. Constitui princípio geral de direito público que os órgãos públicos, nomeadamente os administrati- vos, não podem dispor livremente das suas competências: o quadro competencial tem que resultar de enqua- dramento legal. E, sendo assim, necessário será também impedir a descaracterização da divisão legalmente estabelecida de competências através de atos da função administrativa. Por isso, a delegação de poderes legais só é constitucionalmente legítima se existir norma legal que a habilite. A Constituição estabelece, neste domínio, uma reserva de lei, o que significa que apenas o legislador pode habilitar a administração pública a proceder a delegações dos seus poderes. Neste sentido, um ato de delegação de poderes por parte da administração sem habilitação legal efetiva, ou para além dela, acarreta a violação do artigo 111.º, n.º 2, da Constituição. Com efeito, nesse caso, será a
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