TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 87.º Volume \ 2013

346 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL O critério sob fiscalização neste recurso não respeita a um dever de entrega de documentos autoincrimi- natórios, no decurso de um processo penal, mas sim à utilização como prova nesse processo de documentos que foram anteriormente facultados pelo arguido à administração estadual, em cumprimento de um dever de colaboração. Se, em regra, o direito à não autoincriminação, no que respeita à utilização de prova documental em processo penal, não obstaculiza a que possam ser valorados documentos disponibilizados para outros efeitos pelo arguido em data anterior à do início do procedimento criminal, uma vez que nessas situações não está em causa a autodeterminação do arguido na condução da sua defesa no processo, há situações, como a que ocorre com o critério normativo sub iudicio , em que essa disponibilização é efetuada no cumprimento de deveres de cooperação com entidades administrativas que reúnem meros poderes de inspeção e fiscalização com poderes de investigação criminal, não deixando de existir uma interligação entre o processo inspetivo e o processo criminal. Em concreto, estão em causa documentos, utilizados como prova num processo penal, que haviam sido entregues no cumprimento de deveres de cooperação com a administração tributária quando esta se encon- trava no exercício de atividades inspetivas e fiscalizadoras necessárias ao apuramento de uma determinada situação tributária. Como já vimos, o artigo 63.º, n.º 1, da LGT, acima referido, sob a epígrafe «Inspeção», confere aos órgãos da administração tributária competentes o poder de «desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes». Estes amplos poderes de que goza a administração tributária, para além de subordinados à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, são exercidos «de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários» (cfr. artigo 55.º da LGT), sendo que as regras legalmente previstas a que obedecem os atos de inspeção tributária estão plasmadas no Regime Complementar de Proce- dimento de Inspeção Tributária, no qual se preveem, entre esse poderes de inspeção, as diversas prerrogativas de que gozam os funcionários em serviço de inspeção (artigos 28.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1), bem como a aplicação de medidas cautelares de conservação de prova (artigo 30.º), também já acima mencionadas. Vimos também já que, durante o procedimento de inspeção, o contribuinte está vinculado ao cumpri- mento de deveres de cooperação, desde logo por força do artigo 9.º, n.º 1, do RCPIT, estando obrigado, em cumprimento de tal dever, a facultar aos funcionários em serviço de inspeção o acesso a todos os elementos relacionados com a sua atividade, suscetíveis de revelar a sua situação tributária, designadamente, documen- tos, livros, registos contabilísticos, sistemas informáticos e correspondência relacionada com a sua atividade. Ora, esta documentação e informação cedida pelo contribuinte à administração tributária, no cumpri- mento dos aludidos deveres de cooperação, é utilizável, não apenas no processo de inspeção, que poderá dar lugar à correção da situação tributária, mas também num eventual processo de natureza sancionatória penal, que venha a ser instaurado na sequência ou no decurso da inspeção. Uma vez que o incumprimento dos deveres de cooperação pode dar lugar a responsabilidade penal ou contraordenacional, o contribuinte pode ver-se na contingência de, caso se recuse a colaborar com a adminis- tração tributária, sujeitar-se a ser sancionado com a aplicação da correspondente pena ou coima ou de, caso aceite colaborar, dar lugar a que a administração consiga obter, à sua custa, elementos de prova que venham a sustentar a acusação por crime fiscal. É justamente devido à circunstância de o contribuinte poder ver-se colocado perante esta alternativa que, neste âmbito, podem surgir tensões com o direito à não autoincriminação, colocando-se a questão de saber se a conjugação do referido dever de colaboração com a possibilidade de utilização dos documentos facultados à administração tributária, no cumprimento do referido dever, como prova em procedimento cri- minal deduzido com fundamento nos resultados da referida inspeção, implica uma compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare .

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