TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 86.º Volume \ 2013

630 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Assim, a faculdade do direito de propriedade de que o cônjuge forçadamente constituído em senho- rio se vê privado é, em bom rigor, o jus utendi. O ex-cônjuge proprietário não pode usar, nem destinar ou comprometer o uso do bem por acto de vontade sua ou que lhe seja imputável. Vê o uso da coisa cedido ao ex-cônjuge por acto de autoridade. Identificada a componente do direito de propriedade sobre que incide a ingerência estadual, deve come- çar por reconhecer-se que, apesar de a liberdade de uso e fruição dos bens de que se é proprietário não ser expressamente mencionada no n.º 1 do artigo 62.º da Constituição, no seu núcleo essencial, esta faculdade integra naturalmente o direito de propriedade quando este respeita ao universo das coisas. Todavia, são par- ticularmente intensos os limites constitucionais quanto a este aspecto, podendo a lei estabelecer limitações dos poderes do proprietário usar a coisa credenciadas nos demais valores constitucionais. Aliás, pode até afirmar-se que o jus utendi constitui, no conjunto das faculdades inerentes à proprietas rerum, aquela que pode considerar-se mais necessitada de determinações de conteúdo e mais passível de limitações, seja na própria modelação dos poderes do proprietário no confronto com direitos de terceiro (por exemplo, relações de vizinhança), seja os que decorrem da compatibilização com outros valores constitucionais [por exemplo, dever de uso (artigo 88.º) e condicionamento (artigo 90.º, n.º 2) de meios de produção, ambiente, urba- nismo, segurança e saúde públicas, património cultural e natural]. 6. Contrariamente ao que nas alegações do recorrente se supõe, as limitações da liberdade de determi- nação quanto ao uso da coisa que resultam da norma em causa não provêm da concretização pelo legislador de políticas de habitação e urbanismo, nem convocam o conflito entre o direito de propriedade e o direito inscrito no n.º 1 do artigo 65.º da Constituição contra cujos termos de resolução o recorrente discorre. É, consequentemente, imprestável a sua argumentação quanto à filiação da solução normativa neste preceito constitucional para concluir que ele não suporta o gravame aos poderes de uso do proprietário que dela decorrem. A limitação dos poderes de uso da coisa tem, na norma em causa, outra base constitucional que claramente se reflecte na inserção sistemática do preceito no capítulo do Código referente ao divórcio e sepa- ração judicial de pessoas e bens e na própria literalidade da previsão da norma. Como se referiu na exposição introdutória, trata-se de uma medida introduzida pelo legislador para protecção da família, enquanto ele- mento fundamental da sociedade (artigo 67.º da CRP). Emerge da relação conjugal e da constituição do bem como “casa de morada de família”, qualidade em que o sujeito que vê a sua esfera jurídica afectada volunta- riamente ingressou e situação para que contribuiu, e que tem como beneficiários o outro cônjuge e os filhos. De acordo com o regime legal em que o segmento normativo agora questionado se insere e da qual não pode ser isolado para compreensão da questão que neste recurso é colocada, esta específica vinculação da propriedade só existe por causa da família e poderá deixar de subsistir quando circunstâncias supervenientes o justificarem. Na verdade, é da essência do vínculo conjugal – só desse modo de constituição da família aqui cuidamos – afectar a situação pessoal e patrimonial dos cônjuges, gerando direitos e deveres que põem perdurar para além da sua dissolução, designadamente em matéria de alimentos, que é o efeito mais próximo daquele que agora analisamos. Nesta perspectiva, que é a que corresponde à razão determinante da medida legislativa em causa, trata-se de norma conformadora do estatuto jurídico de um bem (aquele em que a famí- lia estabeleceu o centro da vida familiar) por ter sido afectado pelos cônjuges a uma determinada finalidade que se entende exigir protecção especial, no contexto da relação familiar e por causa dela, mesmo depois da dissolução do vínculo. Não se trata de um sacrifício imposto ao titular em nome de uma genérica hipoteca social da propriedade, mas de manter uma situação emergente dos efeitos do casamento e que vai para além dele. Aliás, os direitos de cada um dos cônjuges sobre o bem em que o casal estabelece o centro da vida fami- liar sofrem compressão noutros aspectos, designadamente, na alienação ou oneração (artigo 1682.º-A do Código Civil), na disposição do direito ao arrendamento [1782.º-B do Código Civil]. 7. Assim, encontrando legitimação na defesa de um elemento constitucionalmente proclamado como elemento fundamental da sociedade, sendo meio idóneo a prosseguir essa finalidade e de modo algum

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