TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 86.º Volume \ 2013

598 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido”, isto é, um valor fundamental que pré- -existe à incriminação e que permite apreciar criticamente o seu sentido (Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007). Neste sentido, “(…) a Constituição surge como o horizonte que há de inspirar e por onde há de pautar-se qualquer programa de política criminal” (vide Acórdão n.º 25/84), isto é, dela resulta uma ordenação axiológica que se afirma como “critério regulativo” da atividade punitiva do Estado (Figueiredo Dias, “Os novos rumos da política criminal e o direito penal português do futuro”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, 1983, p. 16), assente nesse princípio da exclusiva proteção de bens jurídico-penais operacionalizado a partir do artigo 18.º, n.º 2: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. (…)» Apreciando a constitucionalidade do crime de tráfico de estupefacientes, este Tribunal assinalou, preci- samente, que “o objetivo precípuo do direito penal é, com efeito, promover a subsistência de bens jurídicos da maior dignidade e, nessa medida, a liberdade da pessoa humana.” Esta incindível associação entre o direito penal e os bens jurídicos de eminente dignidade de tutela assume-se, desde logo, como um desdobra- mento do princípio constitucional da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da CRP (Costa Andrade, “A dignidade penal e a carência de tutela penal”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal , n.º 2, 1992, p. 184). Assim espartilhado, o instrumentarium penal “há de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem social e à proteção das condições existenciais indispensáveis ao viver comunitário” (cfr. Acórdão n.º 83/95), sendo que estamos perante um bem jurídico com dignidade de tutela quando a conduta que o lese mereça, pela sua danosidade social, um “juízo qualificado de intolerabilidade social” (Costa Andrade, ob. cit., p. 184). Daqui decorre que “toda a norma incriminatória na base da qual não seja suscetível de se divisar um bem jurídico-penal claramente definido é nula, porque materialmente inconstitucional” (Figueiredo Dias, ob. cit., p. 126 ).» Deste modo, e sendo certo que a Constituição não contém, à partida, qualquer proibição de criminali- zação, desde que se mostrem observados os princípios acima referidos, o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela penal, bem como na delimitação das condutas consideradas lesivas de tais bens jurídicos. Neste mesmo sentido, no seu Acórdão n.º 634/93, o Tribunal Constitucional afirmou o seguinte: «É evidente que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocor- rer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva.» No caso dos autos, importa, pois, apreciar se a norma em causa tem por fim assegurar a proteção de bens jurídicos e, na afirmativa, se para esse efeito se mantém ou não dentro dos limites impostos pelo princípio da necessidade. Ora, como vimos, com a incriminação prevista na segunda parte do artigo 170.º do Código Penal, visa- -se proteger a liberdade sexual, punindo a importunação de outra pessoa, mediante o constrangimento desta a contacto de natureza sexual. Ou seja, o legislador entendeu que esse constrangimento a contacto de natureza sexual se traduzia numa ofensa ao bem jurídico da liberdade sexual, cujo relevo era merecedor de tutela penal, não obstante esse con- tacto não revestir uma gravidade idêntica ou equiparável à do “ato sexual de relevo”. Estamos, assim, perante uma opção de política criminal, por parte do legislador, que entendeu que os referidos comportamentos ainda eram dotados de dignidade punitiva, sendo que a criminalização da conduta em causa não teve na sua base razões ligadas ao domínio da moral social ou da moralidade sexual, mas sim apenas a proteção da liberdade pessoal, num dos domínios em que essa liberdade se projeta.

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