TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 86.º Volume \ 2013

449 acórdão n.º 90/13 Também não é o mesmo “facto histórico unitário”, o mesmo acontecimento, um abuso ocorrido numa sexta- -feira de junho de 2000, tendo o assistente 13 anos e um abuso sexual ocorrido em qualquer dia da semana, entre abril e julho de 1999 – tendo o assistente 12 anos. E quanto ao crime de lenocínio: Também não é o mesmo acontecimento, um crime imputado na pronúncia como ocorrido em parte (“dias depois”) do mês de junho de 2000, e um crime ocorrido no período das férias escolares do verão de 1999. 20.ª De acordo com a alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP, a acusação contém a narração ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena (…), incluindo, se possível, o lugar, o tempo(…), sob pena de nulidade. Admite-se assim, que um crime possa ser processualmente imputado sem a narração espacial e temporal, quando, em sede de inquérito, apesar da investigação desenvolvida pelo Ministério Público, não tenha sido possível determinar as circunstâncias de tempo e de lugar. No entanto, se essas circunstâncias tiverem sido apuradas, constam obrigatoriamente da acusação. Nesse caso, o tempo e o lugar integram o próprio facto, pois o facto criminoso não é uma abstração parcelada, é um facto concreto e unitário. E, estando indicadas na acusação ou na pronúncia o “tempo” e o “lugar” da infração, os mesmos não podem ser arbitrariamente alterados pelo Tribunal à medida que o arguido vai fazendo prova de que não pode ter praticado os factos nos tempos e nos locais imputados. A tal se opõe o respeito pela pessoa humana e os seus inalienáveis direitos que um Estado de Direito tem de assegurar. É difícil não ver neste processo um esforço continuado e consciente de alcançar uma indefinição dos elementos acusatórios, com vista a impossibilitar a possibilidade de qualquer defesa, levando necessariamente – como levou – à condenação do recorrente. 21.ª Face à acusação, o recorrente organizou a sua defesa em função do “lugar” e do “tempo” imputados: A acusação no ponto 4.2.1, imputava ao recorrente a prática de crime de abuso sexual na Alameda D. Afonso Henriques, n.º (…), (…), em Lisboa”. Em instrução, requereu e foi produzida prova, tendo-se concluído na deci- são instrutória que “A casa da Alameda D. Afonso Henriques, n.º (…), não será certamente a correspondente ao 2.º andar direito”, pelo que é pronunciado não no 2.º esquerdo, mas no prédio n.º (…); No ponto 4.2.2. era imputado ao recorrente um crime de abuso sexual de criança, em “dia em concreto não apurado, do mês de junho de 2000”, numa casa de que o recorrente “tinha a disponibilidade, sita na Avenida da República, n.º (…), 5.º dt.º., em Lisboa.” Também em instrução, requereu e foi produzida prova, tendo sido reco- nhecido na decisão instrutória, a fls 20806, que “A casa da Av. da República, n.º (…), também não pode ser a do 5.º direito”, pelo que é pronunciado com a localização do abuso numa casa sita na Av. da República, em Lisboa. 22.ª O recorrente organizou então a sua defesa em função do “lugar” e do “tempo” imputados na pronúncia. 23.ª Com êxito, conseguiu provar que os factos não ocorreram nos locais e nos tempos imputados. Em vez da esperada absolvição, são-lhe comunicadas as referidas alterações dos factos descritos na pronúncia, qualificadas como não substanciais, com uma amplitude espacial e temporal tal, que impossibilita e compromete o exercício da defesa. 24.ª Das alterações decididas resulta, não a mera especificação dos factos descritos na pronúncia, mas uma inovação do quadro fáctico relativo às circunstâncias de tempo e lugar, com imputação de um crime diverso porque como referido, constituem um outro “facto histórico unitário”. Crime diverso é aquele em que ocorre um desvio significativo em relação ao objeto do processo, com uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, traduzindo uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual.

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