TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 86.º Volume \ 2013

416 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL J) O Tribunal – através de despacho lavrado na ata da audiência de 22 de outubro de 2008 – indeferiu o pedido por entender que em face da oposição dos assistentes – o artigo 356.º do CPC não o permitiria, dado que, perante tal posição processual, em nenhuma situação se poderia proceder à leitura dessas declarações e, por maioria de razão, ao confronto subsequente daquelas pessoas com o teor de tais declarações, do que foi inter- posto o competente recurso, onde logo foi arguida a inconstitucionalidade ora em pauta. K) Tal recurso interlocutório foi apreciado pelo acórdão recorrido (a pp. 433 e segs.), tendo-o feito em conjunto com a apreciação de outros recursos sobre matéria análoga, igualmente interpostos pelo arguido A. e pelo arguido H.. O recurso foi julgado improcedente, tendo o acórdão ora recorrido adotado o mesmo entendi- mento normativo da 1.ª instância, ou seja, o de que o artigo 356.º do CPP não admitiria – em caso algum – a leitura de declarações prestadas no inquérito, se os assistentes nisso não consentissem, o que foi julgado compatível com os princípios constitucionais. L) Isto é, o acórdão recorrido adota o entendimento normativo do artigo 356.º n.º 2- b) e n.º 5 do CPP [repor- tado às declarações prestadas perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal], devidamente conjugado com o artigo n.º 355.º n.º 1 do CPP, no sentido de que, não tendo os assistentes dado o seu consen- timento à leitura, pedida por um arguido, de declarações produzidas, em inquérito, por assistentes e testemu- nhas, não pode – em nenhuma situação – ser admitida a sua leitura em audiência de julgamento e subsequente confronto de tais assistentes e testemunhas com essas declarações [mesmo que se trate das declarações em que se funda a acusação dirigida aos arguidos e se esteja perante um pedido formulado a fim de avaliar cabalmente a credibilidade da prestação de tais assistentes e testemunhas em audiência de julgamento]. M) Tal entendimento normativo é inconstitucional, por violação do reduto nuclear (3 das garantias de defesa consagradas pelo artigo 32.º n.º 1 da CRP e o princípio do processo equitativo salvaguardado pelo artigo 20.º n.º 4 da CRP e pelo artigo 6.º da CEDH. Tal entendimento normativo – que radicalmente transforma o princípio da imediação num valor prevalecente, acima de tudo e de todos – é intolerável, impróprio de um Estado de Direito e desconhecido em qualquer outra ordem jurídica. N) Não é aceitável que a testemunha (ou o assistente, ou o perito, ou qualquer outro declarante) não possa ser con- frontada com aquilo que disse antes do julgamento – particularmente se o disse em auto, em declarações cuja fal- sidade está sujeita a sanção penal (em Portugal, os crimes de falsidade de depoimento, declaração ou testemunho, p. e p. pelos artigos 359.º e 360.º do Código Penal) –, pelo menos, para que se possa avaliar a credibilidade da sua prestação em audiência de julgamento. Nessa situação, requerido tal confronto pelo arguido em termos relevantes para a sua defesa, o princípio da imediação cede perante os princípios da presunção de inocência, da verdade material e de um processo equitativo, no quadro da salvaguarda do núcleo essencial das garantias de defesa. O) Não se conhece qualquer outra ordem jurídica – organizada de acordo com os princípios de um Estado de Direito – em que vigore o entendimento normativo de que – a não ser com o consentimento de todos os outros sujeitos processuais – ao arguido está vedado confrontar testemunhas ou ofendidos (assistentes ou com qual- quer outra “veste” processual) com aquilo que disseram em declarações prestadas durante o inquérito – perante o Ministério Público ou órgão de polícia criminal –, quando isso seja necessário para avaliar a credibilidade de depoimento relevante para a incriminação. P) Então, se A, em inquérito, diz que foi abusado no sótão da casa, para depois, em julgamento, dizer que foi na cave, não é razoável admitir que pode e deve ser-lhe perguntada a razão da discrepância? E se B diz, primeiro, que foi numa manhã radiosa e, depois, que foi numa noite de temporal?(…) E se C diz, primeiro, que estava acompanhado por D e E e, depois, que, afinal, estava com F e G?(…) E se H diz, primeiro, que foi num domingo, a seguir à missa, e, depois, que foi num dia de semana, quando ia para a escola?(…) E se I diz, primeiro, que o abusador era careca e trajava de vermelho e, depois, tinha uma cabeleira farta e vestia de verde?(…) E se J diz, primeiro, que não conhecia o abusador e, depois, que estava farto de o ver na televisão?(…) Etc., etc., etc.. Entramos facilmente no reino do absurdo.

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=