TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 86.º Volume \ 2013

34 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL aceitar-se – face à consagração constitucional de tribunais arbitrais – que a reserva relativa de jurisdição possa ser concretizada através da única intervenção do juiz arbitral (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pp. 667 e 671). A especificidade do direito público e a vinculação da atuação administrativa ao princípio da juridicidade e à realização do interesse público torna, no entanto, desde logo, discutível que a resolução de litígios emer- gentes de relações jurídicas administrativas fique sujeita a mecanismos de jurisdição arbitral por não estar aí em causa uma autonomia de vontade e um poder de disposição sobre o objeto do pleito (Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 12.ª edição, Coimbra, p. 75, nota 124). As dificuldades adensam-se quando estamos perante uma forma de arbitragem necessária e a autoridade administrativa implicada no processo arbitral é uma entidade privada que apenas intervém na execução de uma tarefa de interesse público por efeito da transferência do exercício de poderes pertencentes a uma enti- dade pública e que, apesar da transferência, se mantêm na sua titularidade. Não é aceitável, num primeiro relance, que o Estado delegue poderes de autoridade numa entidade privada, operando por essa via uma privatização orgânica da Administração relativamente ao exercício de uma certa tarefa pública, e simultaneamente renuncie também a qualquer controlo jurisdicional de mérito, através de tribunais estaduais, quanto às decisões administrativas que sejam praticadas no quadro jurídico dessa delegação de competências. Em tese geral, a exigência de previsão de um meio de recurso para um tribunal estadual, no quadro da arbitragem necessária, torna-se mais evidente, no plano jurídico-constitucional, quando não estão em causa meras relações de direito privado, nem meras relações jurídicas administrativas em que as partes se encontrem em situação de paridade, mas antes relações jurídicas que decorrem do exercício de poderes de autoridade. Para além disso, a circunstância de estarem aqui implicados poderes de autoridade que resultam de uma transferência de responsabilidade no exercício de uma certa tarefa pública, de que o Estado é ainda o titular e por cuja execução continua a ser o garante, justifica que se invoque uma reserva relativa de juiz que proporcione aos tribunais estaduais a última palavra na resolução de litígios que resultem dessa intervenção administrativa delegada. Ainda que os tribunais arbitrais constituam uma categoria de tribunais e exerçam a função jurisdicional, não pode perder-se de vista que essa é uma forma de jurisdição privada, que, no caso do Tribunal Arbitral do Desporto, é imposta obrigatoriamente aos potenciais lesados por decisões unilaterais praticadas por entida- des desportivas no exercício de poderes de autoridade. O direito fundamental de acesso aos tribunais constitui tendencialmente uma garantia de acesso a tri- bunais estaduais em resultado da necessária conexão entre esse direito e a reserva de jurisdição, que apenas poderá caracterizar uma reserva de jurisdição arbitral quando o acesso ao tribunal arbitral seja livre e volun- tário. Ademais, a intervenção de órgãos judiciais do Estado torna-se particularmente exigível quando se trate de assegurar, no quadro regulatório da atuação de entidades privadas investidas em poderes públicos, a sua vinculação à lei e aos princípios materiais de juridicidade administrativa, e, desse modo, também, a adequada fiscalização do desempenho da tarefa pública que lhes incumbe. Neste contexto, a irrecorribilidade das decisões arbitrais, tal como previsto na norma impugnada, repre- senta uma clara violação do direito de acesso aos tribunais, não apenas por se tratar de decisões adotadas no âmbito de uma arbitragem necessária, mas também pela natureza dos direitos e interesses em jogo e pelo facto de estar em causa o exercício de poderes de autoridade delegados. 14. Ainda que assim não fosse sempre se poderia entender que a atribuição de uma autonomia plena à justiça desportiva mediante a sujeição a arbitragem necessária dos litígios emergentes do exercício de poderes públicos, por parte das entidades desportivas, corresponderia a uma restrição de um direito fundamental em desrespeito pelo princípio da proporcionalidade.

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