TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 86.º Volume \ 2013
335 acórdão n.º 75/13 Além disso, deve referir-se que a “diretiva” em causa – para além de não ser portadora de “aplicabilidade direta”, pois depende, precisamente, de ato nacional de transposição – nem sequer permite que dela seja extraída qualquer norma “clara, precisa e incondicional”, de modo a que se pudesse concluir que a mesma dispõe de “efeito direto”. Com efeito, não foi a Diretiva 2000/53/CE que fixou os concretos prazos de tra- tamento de veículos em fim de vida, tendo apenas determinado, no artigo 6.º, n.º 3, in fine , que “[a]s ope- rações de tratamento de despoluição dos veículos em fim de vida referidas no ponto 3 do anexo I devem ser efetuadas com a maior brevidade possível”. A norma em causa carece, portanto, de “precisão” – ou seja, de uma especificação intensa dos elementos constitutivos da norma –, pelo que não pode negar-se que a situa- ção jurídica é diretamente regida por um instrumento legislativo de fonte nacional e não de fonte europeia. 6. Estando o legislador governamental vinculado às regras constitucionais de competência legislativa, quando procede à transposição de “diretivas” da União Europeia que não contenham normas “claras, pre- cisas e incondicionais”, resta averiguar qual a natureza do “direito à iniciativa privada” (artigo 61.º, n.º 1, da CRP), que vem invocado pela recorrente, com vista a aferir se aquele direito fundamental se encontra abrangido pela referida reserva de lei parlamentar. Ora, aquele direito fundamental encontra-se inserido no Título III da Parte I da Lei Fundamental, pelo que não faz parte do regime específico dos “direitos, liberdades e garantias”, não se aplicando, pelo menos diretamente. Importa, porém, verificar se pode ser qualificado como “direito análogo” (artigo 17.º da CRP) e se, em caso afirmativo, pode beneficiar da reserva parlamentar de competência legislativa. Deve recordar-se que o Tribunal Constitucional já tomou posição acerca da amplitude máxima da reserva de competência parlamentar ínsita na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º Ao contrário do que defen- deria uma “conceção restritiva” – por exemplo, preconizada por Jorge Miranda ( Manual de Direito Consti- tucional, Tomo IV, 2008, pp. 160-163), que entende que os “direitos análogos” não ficam abrangidos pelo regime orgânico dos “direitos, liberdades e garantias” –, a jurisprudência consolidada deste Tribunal (a título de exemplo, ver os Acórdãos n.º 329/99, n.º 187/01, n.º 491/02, n.º 358/05 e n.º 304/10, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ) , que se reitera, entende que a redação daquela norma de reserva relativa abrange igualmente os “direitos análogos”. Nessa perspetiva, caso se viesse a qualificar o “direito à iniciativa privada” como tal, forçoso seria concluir pela violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. Vejamos, então, se assim é. Tem sido reiteradamente afirmado que a mera inserção do artigo 61.º no Título relativo a “direitos, sociais e económicos” não o priva de uma certa dimensão de “direito à não intervenção estadual”, que é típica dos “direitos, liberdades e garantias” (cfr. Acórdãos n.º 187/01 e n.º 304/10). Não se trata, portanto, de um mero “direito à atuação estadual”, mas antes de um direito que, em certa medida, exige que o Estado (e os demais poderes públicos) se abstenha(m) de o colocar em causa, mediante intervenções desrazoáveis ou injustificadas. Tal direito fundamental compreende, em si mesmo, uma “vertente decisório/impulsiva”, que resulta na faculdade de formação da vontade de prosseguir determinada atividade económica e de lhe dar início, e uma “vertente organizativa”, que pressupõe a liberdade de determinar o modo de organização e de funcionamento da referida atividade económica (cfr. Acórdãos n.º 358/05 e n.º 304/10). Porém, a verificação de que o “direito à livre iniciativa privada” partilha de algumas características dos “direitos, liberdades e garantias” não significa que todo o respetivo conteúdo normativo possa beneficiar da integralidade daquele específico regime constitucional. Para tanto, imperioso se torna que seja possível extrair do conteúdo daquele direito um “conteúdo essencial” que corresponda à “dimensão negativa” dos “direitos de liberdade”. Dito de outro modo, só a parcela do “direito à livre iniciativa privada” que corres- ponda a um dever de abstenção do Estado face àquela livre conformação do indivíduo (ou da pessoa coletiva) é que beneficia do regime específico dos “direitos, liberdades e garantias”, ficando assim sujeito à reserva legis- lativa parlamentar fixada pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP. Neste sentido, constitui referência incontornável o Acórdão n.º 289/04:
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