TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 85.º Volume \ 2012
324 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL contraordenação, que pode ir ao ponto de a entidade administrativa competente para a decisão não integrar a autoridade administrativa competente para investigação (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contraordenações, p. 119). É solução que cabe na discricionariedade legislativa, mas que não decorre das garantias constitucionais relativas ao processo de contraordenação, garantida que está a possibi- lidade de o arguido ser ouvido e se defender antes da decisão administrativa sancionatória e a impugnação desta em todos os seus aspetos lesivos, perante um tribunal independente e imparcial e com plena jurisdição, mediante um processo contraditório. 7. É certo que desde logo decorre do princípio do Estado de direito, proclamado no artigo 2.º da Cons- tituição, que o processo de contraordenação tem de ser um “processo justo” em todas as suas etapas, nessa exigência se incluindo que a estrutura organizatória e a configuração normativa do processo (bem como o seu concreto desenvolvimento) permitam que quem investiga e decide na fase administrativa reúna requisitos de isenção e imparcialidade e possa ser visto como tal. Só assim o poder público se legitima como ordenado ao fim de garantir a dignidade da pessoa humana, a liberdade, a justiça e a segurança, elementos cardeais do entendimento contemporâneo do princípio. Todavia, a intensidade das vinculações neste domínio é variável em função da natureza do poder exerci- do, do tipo de ilícito e da potencialidade lesiva da atuação do poder público. A imparcialidade que se exige da Administração – e que é consagrada no artigo 266.º da Constituição, devendo a conformação dos proce- dimentos e da organização administrativa ser ordenada a assegurar a observância do princípio – não tem as mesmas consequências organizatórias que decorrem do “direito a um juiz imparcial”. De modo genérico, o respeito pelo princípio da imparcialidade administrativa determina que todos os factos e interesses relevantes segundo a norma jurídica sejam ponderados pelo decisor e proíbe que outros que não esses sejam conside- rados na decisão. Enquanto princípio material vinculativo da Administração, o princípio em causa cumpre basicamente três funções: (i) os interessados podem confiar em que os seus assuntos submetidos à apreciação da Administração merecerão uma decisão imparcial; (ii) o titular do órgão ou agente deve precaver-se contra a hipótese de, perante conflito de interesses, a sua decisão ser considerada violadora dos seus deveres pessoais e funcionais; (iii) a Administração deve, enquanto organização, acautelar-se de modo a que, em caso de conflitos de interesses, as suas decisões não corram o risco de não serem cumpridas ou aceites (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição (…) , Vol. II, p. 803). É seu instrumento ou “guarda avançada”, no plano subjetivo, o regime de impedimentos, suspeições e escusas, não competindo aqui dizer se, no processo de contraordenação, há de recorrer-se, neste domínio, às regras do procedimento administrativo ou do pro- cesso penal (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, loc. cit., p. 120). Mas, diversamente da imparcialidade judicial, a imparcialidade da Administração (das “autoridades administrativas” na terminologia do RGCO) não implica a neutralidade do decisor. As “autoridades admi nistrativas” ainda quando aplicam sanções em ilícito de mera ordenação social não dirimem conflitos de interesses púbicos e privados: prosseguem o(s) interesse(s) público(s) postos pela lei a seu cargo. Quer as que investigam, quer as que são chamadas a aplicar a sanção. E isso mesmo não pode deixar de considerar-se representado pelo legislador constituinte quando acolheu o ilícito de mera ordenação social com a caracterís- tica essencial de a “primeira palavra” sancionatória pertencer, em princípio, à Administração e se absteve de sujeitar o respetivo processo ao princípio do acusatório. Não pode, assim, subscrever-se a afirmação de que, em ordem a respeitar a exigência de um processo equitativo, a entidade com poderes de fiscalização e sancionatórios deva deter uma estrutura independente em relação às entidades que prosseguem o interesse público primário, devendo ainda ser dotada de au- tonomia técnica e financeira, que é a solução consentida ao legislador pela decisão recorrida. Essa para- -judicialização da fase administrativa do processo – que, aliás, só atingiria totalmente os seus objetivos se a decisão pertencesse sistematicamente a uma autoridade administrativa independente –, com uma enti- dade administrativa com poderes de promoção da pretensão punitiva e outra, sem ligação com o interesse públicoprimárioobjeto de tutela contraordenacional, com poderes de decisão e aplicação da sanção, não é
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