TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 85.º Volume \ 2012

321 acórdão n.º 595/12 do artigo 227.º, assumindo-o com o que essencialmente o caracteriza e distingue no elenco das categorias de ilícito público – é que a “primeira palavra” em matéria de aplicação da sanção pertence, em princípio, à Administração. De acordo com o artigo 33.º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), salvo as especialidades previstas no diploma, o processamento das contraordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às autoridades administrativas. Salvo em situações particulares ( v. g. concurso ou convolação de crime em contraordenação e regime dos financiamentos políticos) a aplicação da sanção só compete ao juiz se o arguido não se conformar com decisão administrativa. De modo esquemático, o legalmente denominado “processo de contraordenação” (II Parte do RGCO) comporta duas fases. Uma fase de procedimento que culmina na decisão administrativa sancionatória (artigos 33.º a 58.º do RGCO). E uma fase de impugnação dessa decisão administrativa (artigos 59.º a 75.º do RGCO). Porém, mais do que duas fases de um mesmo processo, tanto na perspetiva orgânica como material ou funcional, há dois momentos procedimentais autónomos. O primeiro consiste numa sequência ordenada de formalidades ten- dente à formação da decisão sancionatória da autoridade administrativa ou com funções administrativas, na prossecução do interesse público posto pela lei a seu cargo. O segundo é já um meio de defesa jurisdicional contra a ação sancionatória da autoridade administrativa. Embora com a particularidade de a impugnação, se respeitados os requisitos de forma e tempo, eliminar automaticamente o caráter definitivo ( hoc sensu, ma- terialmente definidor da situação do particular) da decisão administrativa, porque a apresentação dos autos ao juiz vale como acusação, assim se convertendo em judicial o poder de aplicação da sanção (cfr. artigo 62.º do RGCO). No regime do ilícito de mera ordenação social de proteção aos “jogos sociais do Estado” esta competên- cia sancionatória compete a um órgão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pessoa coletiva que é titular exclusivo da respetiva promoção e exploração. É o Departamento de Jogos (DJ), melhor, a respetiva Direção, a “autoridade administrativa” para efeitos do artigo 33.º do RGCO. Os serviços procedem à instrução do processo e à Direção compete a apreciação e aplicação da sanção. Foi o que no caso sucedeu, com base num auto de notícia levantado por agente da Polícia de Segurança Pública. Tem sido doutrinalmente controversa a natureza jurídica da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (cfr. Pedro Gonçalves, Entidades Privadas com Poderes Públicos, p. 922; Marcello Rebelo de Sousa, Os Novos Esta­ tutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Estudos de Direito Público, pp. 43 e segs.; José Carlos Vieira de Andrade, Os Novos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Estudos de Direito Público, pp. 99 e segs.). Os Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro, na sequência do Decreto- -Lei n.º 322/91, de 26 de agosto, definem-na como pessoa coletiva de direito privado de utilidade pública administrativa. A SCML prossegue fins de ação social, de prestação de cuidados de saúde, educação, cultura, e outras atribuições que lhe sejam cometidas pelo Estado, sobretudo em proteção dos mais desfavorecidos. Como meio de obtenção de receitas, é concessionária ex lege da exploração dos jogos sociais do Estado, em regime de exclusivo para todo o território nacional, aliás na sequência de uma longa tradição. Como salienta Pedro Gonçalves (que propõe a sua qualificação como instituto privado do Estado), “[o] Governo exerce sobre ela vastos poderes de tutela e de superintendência – define as orientações gerais de gestão, determina os critérios de atuação e os objetivos a prosseguir, autoriza, aprova e homologa inúmeros atos, regras e negócios jurídicos da instituição, fiscaliza a sua atividade: é, de facto, o Governo que determina, estabelece ou marca a ‘agenda da instituição’ além de nomear os titulares dos órgãos de administração (Provedor e Mesa), assim como a maioria dos titulares dos órgãos consultivos e de fiscalização”. O qualificativo de pessoa coletiva de utilidade pública administrativa reflete a primariedade pública dos fins que a SCML é chamada a realizar, numa relação que não se resume à prossecução em coexistência cooperante e controlada, e corresponde a uma inserção de modo mais intenso na Administração e na sujeição a poderes de controlo que se aproximam do poder de superintendência (Marcello Rebelo de Sousa, loc. cit., p. 63). Neste contexto das atribuições de interesse público administrativo e de vinculações jurídico-públicas a que está sujeita e que a diferenciam das restantes “Misericórdias”, mesmo quando não se considerem ineren- tes ou passíveis de atribuição na mera qualidade de concessionário, os poderes conferidos à SCML no âmbito

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