TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 85.º Volume \ 2012
23 acórdão n.º 404/12 Sendo o objeto de proteção da norma do artigo 23.º da CRP um produto da ordem jurídica, sem qualquer prefiguração na realidade social, a conformação institucional do órgão e o regime do direito de apresentar queixas a ele dirigidas só ganham traços mais precisos a nível da legislação ordinária que regula o estatuto e a atividade do Provedor de Justiça. Mas essa legislação tem que respeitar, como é óbvio, as indica- ções normativas extraíveis do desenho constitucional da figura. Entre essas indicações consta a regra de que «a atividade do Provedor de Justiça é independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis» (artigo 23.º, n.º 2). Estando em apre- ciação uma norma que determina o esgotamento prévio dos recursos administrativos previstos na lei, como condição de exercício do direito de queixa ao Provedor de Justiça, cumpre, antes de mais, ajuizar da compa- tibilidade deste regime com aquela regra constitucional. A questão já foi analisada e decidida no Acórdão n.º 103/87. Aí se escreveu, no que a este ponto se refere: «É certo que no n.° 2 do artigo 23.º da Constituição se qualifica a atividade do Provedor de Justiça como “independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis”. Mas, em boa verdade, ao dizer isso o preceito ora citado apenas estabelece o princípio da “autonomia” desse direito de queixa relativamente a outros direitos de reclamação e recurso, com a consequente possibilidade do seu uso cumulativo – princípio e consequência que não são afetados quando se “condiciona” o exercício daquele primeiro direito ao prévio esgota- mento da via hierárquica. Esta exigência, no fundo, apenas significa que a queixa ao Provedor há de ser dirigida da ação ou omissão da entidade que fecha a hierarquia administrativa em causa, e cuja decisão é, assim, a única com valor “definitivo”». O conceito de “independência” presta-se, neste contexto, a interpretações não coincidentes, com graus variáveis de imposição da separação das duas formas de intervenção. Mas o Tribunal entende que a apre- ciação feita no Acórdão n.º 103/87 é de manter, não obstante a norma ter sido objeto, na doutrina, de interpretações mais rigoristas (cfr. ob. cit ., pp. 441 e 442; André Salgado de Matos, “O Provedor de Justiça e os meios administrativos e jurisdicionais de controlo da atividade administrativa”, in O Provedor de Justiça. Novos Estudos , Lisboa, 2008, pp. 157 segs., pp. 172 e 176-177). Note-se que, nos termos do artigo 23.º, n.º 2, a independência é reportada à “atividade do Provedor de Justiça”. E essa norma encontra concretização imediata na possibilidade de o Provedor de Justiça atuar por iniciativa própria (artigos 4.º e 24.º, n.º 1, do respetivo Estatuto). Reportada, especificamente, ao direito de queixa, a independência da atividade do Provedor de Justiça em relação aos meios graciosos e contenciosos significa apenas, a bem dizer, que estamos perante instrumen- tos cumulativos de tutela, pois obedecem a pressupostos e perseguem objetivos distintos, não implicando o recurso àqueles meios o decaimento da possibilidade de exercício do direito de queixa. Aquela via não substitui esta, nem o resultado da sua ativação se projeta, por qualquer forma, na tramitação e na sorte des- ta. A obrigatoriedade, para o militar queixoso, de exaurir os recursos hierárquicos previstos não lhe retira a disponibilidadedo direito de queixa, não sendo o respetivo procedimento, quando desencadeado, mini- mamente influenciado pela forma como foi instruído e decidido o recurso hierárquico prévio. Em suma, o direito de queixa assume autonomia em relação àqueles outros meios porque a existência destes não é condição nem preclude o seu exercício, nem o resultado da sua utilização pode interferir com a atividade do Provedor de Justiça e com a sua liberdade de apreciação. Fica sempre salvaguardada, deste ponto de vista, a garantia que a instituição constitucional do Provedor de Justiça consagra, como órgão que atua “fora do sistema” (a expressão é de Maria Eduarda Ferraz, O Pro- vedor de Justiça na defesa da Constituição , Provedoria de Justiça, 2008, p. 31), sem qualquer dependência dos pressupostos de atuação, dos modos de funcionamento e dos critérios de decisão deste.
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